COMADRE SEBASTIANA 
             TERCEIRO CAPÍTULO              
ISBN 592.229 
QUARTEL - GABINETE - INT/NOITE 
Coronel indica pilha de caixas para João Batista. Ordena. 
CORONEL ARTHUR 
...são documentos sigilosos para serem organizados conforme origem e data de entrada. Cada um deles. O senhor já deve ter percebido a responsabilidade no manuseio desse material. Uma vírgula fora do lugar pode ser o caos do Bananal! 
JOÃO BATISTA 
Pois não, Excelência. Conte com minha discrição e minha eficiência. O Coronel pode ficar tranquilo. 
CORONEL ARTHUR 
E é para amanhã de manhã. 
O relógio na parede marca vinte horas. Cabo Negão veste a jaqueta e o quepe no comandante e saem.  João Batista fica aturdido em frente a uma pilha de caixas de documentos. Toca o telefone. A TELA SE DIVIDE. 
APARTAMENTO DO CORONEL - COPA - INT/NOITE  + QUARTEL - GABINETE - INT/NOITE 
Dona Yolanda fala ao telefone com o baseado na boca, soprando fumaça no aparelho como de costume. 
JOÃO BATISTA 
Gabinete do comandante, boa noite. 
DONA YOLANDA 
É a esposa do coronel. Passe a ligação para ele. 
A fumaça orbita à volta da cabeça de João Batista. Perturba-se. Novo sopro de Dona Yolanda. 
JOÃO BATISTA 
O-o ...coronel não se encontra no momento. Posso ajudá-la? 
DONA YOLANDA 
Em nada! Ligo outra hora. 
QUARTEL - GABINETE - INT/NOITE 
João Batista viaja na fumaça saindo do aparelho.  Observa a papelada e começa a organização.  Hesita manejando e lendo alguns papéis. 
RUA - EXT/NOITE 
Dulce fala no orelhão. 
JOÃO BATISTA (V.O.) 
Não sei explicar, fiquei esquisitão, a cabeça pesada... 
DULCE 
Calma Joãozinho, você vai conseguir fazer tudo até amanhã, tenho certeza. JOÃO BATISTA Pode descontar depois, mozinha. 
DULCE 
Vou te arrebentar a cara todinha, meu gostoso! 
QUARTEL - GABINETE - INT/NOITE 
João Batista ao telefone. 
JOÃO BATISTA Isso! Assim é que se fala, mozinha. Desliga o telefone e volta viajando na papelada. 
SALÃO - INT/NOITE 
Dulce adentra o recinto em grande estilo. As moças salientam-se à sua volta.
LEILA 
Não acredito! Olha quem tá aqui! 
LUCIANE 
Gente, olha a Grande Irmã! A boa filha à casa torna? 
LEILA 
Ficou com saudade da gente? 
DULCE 
Também. Mas tem outra coisa: Não consigo viver sem o bolero. 
As luzes diminuem, soa a introdução e Dulce começa a cantar o Frenesi. Sua voz invade o gabinete do Coronel. 
QUARTEL - GABINETE - INT/MADRUGADA 
João Batista viaja na papelada. 
DULCE (V.O.) 
"Quiero que vivas sólo para mí/ Y que tú vayas por donde yo voy/ Para que mi alma sea no más de ti/ Bésame con frenesí". 
João Batista toma o enésimo cafezinho; a bandeja cheia de xícaras sujas. João Batista desaba sobre a papelada. 
SALÃO - INT/NOITE 
Aplausos para Dulce que agradece a todos e encosta-se no balcão. 
SALOMÃO 
O de sempre, Grande Irmã? 
DULCE 
Sem meu cuba libre também não consigo viver. 
Dulce fica alerta quando percebe Leny se aproximando. 
LENY 
Presença de uma senhora casada num puteiro é sempre um grande acontecimento. Uma honra para as vagabundas! Vai para o trono ou não vai, meninas? 
As moças se assanham. 
TODAS 
Vaaai!... 
DULCE 
E você? Já desengomou seu babado com Joel? 
Pausa e silêncio. Leny passa da euforia à desolação. Chora.                                                  SALÃO - QUARTO DOS FUNDOS - INT/NOITE 
Leny puxa uma mala de baixo da cama. Abre-a exibindo um variado arsenal de armas e munições. 
DULCE 
Caralho! Que horror! Como você foi se sujeitar a isso, Leny? Tás botando a vida de todo mundo em risco, mocreia! Isso não te passou pela cabeça? 
Climão no quarto dos fundos. 
QUARTEL - GABINETE - INT/DIA 
Dia seguinte. João Batista entrega as caixas perfeitamente arrumadas e classificadas para o comandante. 
JOÃO BATISTA 
...em perfeita ordem cronológica e de procedência, meu comandante. 
CORONEL ARTHUR 
Muito que bem, senhor sargento... Fora isso confio em sua discrição. Fui claro? (ordena) Agora vá descansar um pouco, tomar um banho e comer. Tem muito o que fazer depois do almoço. 
João Batista cruza na saída com o ex-comandante, o Coronel Cavalcanti, entrando. Saudações protocolares.  Coronéis e Cabo Negão batem continência uns para os outros. 
CORONEL ARTHUR 
Coronel Cavalcanti, mas que surpresa! A que devo tamanha satisfação? 
CORONEL CAVALCANTI 
Coronel Arthur, como estamos? Não resisti ao desejo de visitar minhas antigas instalações. Mas vejo que a coisa aqui mudou de figura. 
CORONEL ARTHUR 
Dei uma mexida, organizei diferente. Que tal, gostou? 
Estala os dedos no alto e a pilha de caixas classificadas desaparece de cima da mesa. Estala novamente e as xícaras sujas de João Batista também evaporam.  Entra um TAIFEIRO jovem. As xícaras de João batista reaparecem em sua bandeja. Taifeiro sai. Cabo Negão serve cafezinho aos coronéis. 
CORONEL ARTHUR 
E a família? Como vão Dona Sirigaita e aquelas crianças maravilhosas?
 CORONEL CAVALCANTI 
Aquele pequenos demônios têm dado bastante trabalho, mas é a idade, o coronel deve estar sabendo... Já minha filha, esta sim, cada dia mais encantadora e eu cada vez mais apaixonado! 
CORONEL ARTHUR 
A propósito, coronel, conversei com minha senhora sobre do estreitamento dos nossos laços sociais. 
CORONEL CAVALCANTI 
Já é a segunda coincidência nessa minissérie: Sirigaita também indaga sobre a esposa de vossa excelência e fico sem saber o que responder. Ela e Dona Estropícia adorariam conhecê-la. 
CORONEL ARTHUR 
Sem dúvida, coronel, sem dúvida. 
CORONEL CAVALCANTI 
Não seria conveniente uma ocasião especial? O que o senhor... 
Tira um cartão de visitas do bolso e entrega. 
CORONEL CAVALCANTI 
Sugiro que caiba a Dona Yolanda... Bem, não quero estorvá-lo demasiado, comandante. Do jeito que as coisas estão deve ter muito trabalho pela frente. 
CORONEL ARTHUR 
Será sempre um prazer, coronel. Volte sempre. Batem continência. 
Coronel Cavalcanti sai. Cabo Negão atende o telefone. Escuta apreensivo. 
CABO NEGÃO 
Coronel! É o sargento João Batista! 
Instrutor do Esquadrão Caveira entra e atira o sargento João Batista algemado a um jovem RECRUTA completamente nus no chão do gabinete do comandante. 
OPALA PRETO - INT/DIA 
Cabo Negão encaixa o cassete Je T’aime Moi Non Plus no rádio. O comandante devaneia no banco de trás assistindo as duas próximas cenas projetadas no retrovisor do opala. 
QUARTEL - DORMITÓRIO - INT/DIA 
João Batista acorda com a voz do Recruta cantando. 
VOZ DE RECRUTA (V.O.)
 ... Je vais, je vais et je viens/ Entre tes reins/ Je vais et je viens 
Na passagem o Recruta flerta com João Batista deitado no beliche. 
QUARTEL - CHUVEIRO - INT/DIA 
Recruta e João Batista se beijam em baixo do chuveiro.                                Instrutor Caveira flagra. 
APARTAMENTO DO CORONEL - SALA - INT/DIA 
O quepe, a jaqueta e as botas do Coronel Arthur são arremessados na televisão em plena hora do Jornal da Naite. Dona Yolanda pula no sofá em que dormitava. 
DONA YOLANDA 
De novo, meu neném? 
CORONEL ARTHUR 
De novo e quando eu quiser! E na hora que me der na telha! E se não estiver satisfeita pode arrumar a mala e desinfetar daqui! 
Dona Yolanda olha-o maligna. Levanta-se e bate em retirada. 
APARTAMENTO DO CORONEL - BANHEIRO - INT/DIA 
Dona Yolanda se aproxima com copo e garrafa de uísque. Coronel de molho na banheira. 
CORONEL ARTHUR 
Fora daqui, escrotinha! 
APARTAMENTO DO CORONEL - COZINHA - INT/NOITE 
Dona Yolanda despeja uma macarronada fumegante. Sopra a fumaça, cospe dentro e mistura tudo no molho. Canta. 
DONA YOLANDA 
"Du bist verflucht"!
 LEGENDA 
Maldito seja! 
Coronel Arthur se revela lendo o jornal no outro lado da travessa fumegante. Dona Yolanda circula nervosa e enfurecida à sua volta. 
DONA YOLANDA 
Pois fique você sabendo que se alguma coisa sair errada nesse jantar a culpa é sua! Trata de contratar um bufê se não quiser que eu ponha veneno na comida desta gente toda! 
CORONEL ARTHUR 
Tudo bem... Faz como ce quiser, maínha. 
DONA YOLANDA Onde já se viu? "Recepção para a família do Coronel Cavalcanti"! Parece até amigo de longa data. 
CORONEL ARTHUR 
É só um encontro familiar de dois comandantes, maínha, sem formalidades. 
DONA YOLANDA 
Você está cansado de saber que eu tenho hor-ror de gente aqui dentro! E como se não bastasse uma Sirigaita, ainda vão trazer a Estropícia a tiracolo! 
CORONEL ARTHUR 
Maínha tem carta branca. Faça o que você quiser. 
DONA YOLANDA 
Pois trata de se coçar pra não saírem daqui falando que isso aqui é casa de pobre. 
Faz menção de sair, mas volta. 
DONA YOLANDA (cont)
 E outra coisa, eu quero uma televisão co-lo-ri-da! Você agora é Comandante e o mínimo é apresentar uma televisão colorida para as visitas! Fui clara?
 APARTAMENTO DO CORONEL - QUARTO DO CASAL - INT/NOITE 
Deitado na cama o Coronel alisa a barriga com o olhar perdido e dorme. Dona Yolanda passa na porta do quarto com a vela acesa. RONCOS do coronel.             Dona Yolanda volta, sopra várias vezes a fumaça do baseado sobre ele. Seus roncos aumentam gradativamente até ensurdecerem a faixa sonora.
RUA - EXT/NOITE 
A lua cheia se revela após a passagem de uma nuvem. Ventania na rua serpenteia folhas na calçada. Cães uivam. ECOAM tambores distantes. 
APARTAMENTO DO CORONEL - COZINHA - INT/NOITE 
Dona Yolanda tira uma galinha preta viva e estabanada de dentro da geladeira. Amarrada pelos pés a ave debate-se sobre a mesa. Dona Yolanda volta desequilibrando-se sob o peso da espada do Bananal erguida ao alto.  A galinha de louça se sacode cacarejante em cima da geladeira. 
APARTAMENTO CORONEL - CORREDOR - INT/NOITE 
Um enxame de moscas voa sobre Dona Yolanda quando ela abre o armário no fundo corredor. Vários pés de galinha apodrecem numa gaveta. Sobre eles cai um novo par.  Dona Yolanda espeta a cabeça da galinha preta junto a outras pregadas em um calendário no verso da porta do armário.  No fundo ergue-se uma bruxa de pano tamanho natural paramentada com os bordados e a peruca de Dona Yolanda.  Olham-se imóveis e fixamente.  Em baixo dela uma garrafa de marafo, farofa e a vela acesa. 
RUA - EXT/NOITE 
Dulce preocupada no orelhão. A chamada não é atendida. Desliga. 
APARTAMENTO DE JOÃO BATISTA - SALA - INT/NOITE 
João Batista entra em casa com o rosto coberto de hematomas e a farda nova de sargento toda rasgada. Desaba no tapete. Dulce acode. 
DULCE 
Joãozinho! 
Dulce injuriada solta os bichos em cima de João Batista. 
DULCE (cont)
Me admira você, logo você levantando a voz pro comandante! Cadê o que nós combinamos? Desde quando a franga toma esse tipo de atitude? 
JOÃO BATISTA 
E-eu já não estava mais aguentando de cansaço e o comandante me enchendo o saco... DULCE Combinamos de você engolir! 
JOÃO BATISTA 
Estava com a boca seca. 
DULCE 
Não me sacaneia que eu te meto a porrada! (desconfia) E Joel resolveu te dar o bote logo no dia que ce tomou suspensão no quartel? 
JOÃO BATISTA 
Quando eu disse que não ia dar mais dinheiro, que não queria mais ver a cara dele... 
DULCE 
Falou o que? 
JOÃO BATISTA 
Que eu não tinha escolha e pra ele não faria a menor diferença. 
DULCE 
Esta história mal contada ou você está querendo abusar da liberdade de expressão? 
JOÃO BATISTA 
Disse que a cara dele já está colada pela cidade toda. Meteu porrada em mim na frente de todo mundo e sumiu no asfalto. 
DULCE 
Essa era a hora! Era pra cima dele que você devia ter crescido, não do comandante! 
João Batista se vê no espelho e chora. Dulce lambe a lágrima, dá a bofetada de boas vindas e acaba de rasgar a farda do sargento. Tapas na cara de ambos os lados. Esfregam-se sofregamente quando Dulce percebe a marca do chupão do Recruta no pescoço do marido.  Derruba João Batista com um soco na cara. 
DULCE 
E esse chupão aí, filho da puta! Que porra é essa? 
Joãozinho chora copiosamente. Ajoelha-se aos pés de Dulce. 
JOÃO BATISTA 
Perdoa, mozinha! Eu me mato se você me deixar.
 DULCE 
Ué? Não era pela sua mãe que você se enforcava antigamente? 
JOÃO BATISTA 
Pisa, pisa! Pode pisar! 
DULCE 
Vai contar lorota pra vaca da tua mãe! 
João Batista afinal cresce, levanta e derruba Dulce idem. Sangue na boca dos dois. No mesmo pé em que some pelo corredor, João Batista volta produzido, abre a porta e sai. Uma saraivada de talheres, copos, panelas, coturnos, quepe e pedaços da jaqueta rasgada é atirada na porta da saída.  O consolo preto de borracha balançando no chão. Ruídos indistintos dentro da casa.  Dulce chuta o consolo e sai puxando mala.  Tambores ECOAM. 
APARTAMENTO DO CORONEL - QUARTO - INT/NOITE 
Coronel rola na cama indócil. Remexe-se.  De repente ri e sacode-se.               Senta-se tonto, sonolento, consulta o relógio desfocado.  Derruba o abajur ao levantar. Convulsiona. Na cama Dona Yolanda arregala um olho.  Coronel Arthur cambaleia escorado no alizar da porta do quarto.           
APARTAMENTO DO CORONEL - CORREDOR - INT/NOITE 
Coronel Arthur se sacode na direção ao armário ao fundo do corredor. O armário fica mais longe a cada passo e de repente abre-se automático na frente do coronel.  Coronel Arthur se entorta na direção do marafo e bebe a garrafa inteira no gargalo.  TAMBORES e UIVOS aumentam. 
TERESÃO - EXT/NOITE 
Alvoroço dos desbundado na área. Fila grande e grossa na porta do teatro. 
TERESÃO - BOTECO EM FRENTE. 
As francesas estão todas enfeitadas. Rainha dos Raios é o centro das atenções no balcão do botequim. 
RAINHA DOS RAIOS 
...saiu arrastada pelo carcerê, nem sei le fan que levô! 
SURAMA 
E o vento levou, rarará!... 
MARILHÃO 
Eu hein? Esse negoce de comuniste não dá onda nem nada... Tré careta pro meu gosto. 
MICTÓRIO 
Ce meiér ficar na nossa e não levantèrre muita poeira desse assunto não. 
ANA BAGANA 
Também acho. 
RAINHA DOS RAIOS 
Pelo contrèrre: Tá na hora da gente descobrir o fim que a Gorda levou. 
MICTÓRIO 
Concordo em jene, número e grau com a senhora. (aos outros) Só quero ver na hora que a maconha acabar, qui avevú de lembrar! 
MARILHÃO 
Surama, a senhora que é adevogada dá uma idéie pra procurê a francesa. 
SURAMA 
Uí, monamu, je suí anavocá, mas não faço milègre não, Marilhão. E nem contem comigo pra enfrentar tanque na rua, mé flers... 
Chega Tinhosa com a cabeça enfaixada, o braço na tipoia e curativos pelo corpo todo. A fila do Teresão repara em sua chegada. 
TODOS 
Tinhooooosaaaaa!... 
ANA BAGANA Tá maluca, viado? Te falei pra cherchê la cama ine seméine! Quesque titá fazendo aqui, bicha? 
Rainha dos Raios aponta os machucados da portuguesa. 
RAINHA DOS RAIOS 
O modelito da Gorda tava mé-o-moan igual esse da Tinhosa mermo. 
TINHOSA 
Pois je me sinte ma-ra-vi-lhê-se e meu modèle a-rra-sa! Vim aqui non celeman pur lamur que jé pelas francèse. 
ANA BAGANA 
Quer parar de me dar trabalho? 
TINHOSA 
Çanuí, ce la Dem vé curê tu le feri de mi corps. E de minh’alma lusitana também. 
ANA BAGANA 
Então tá. Da próxima vez chama ela. 
TINHOSA 
Dem vai fazer o miracle que le mediçan nefapá ojurduí. (brada) DEM É MEU BEM! 
TODOS NA FILA 
Dem meu bem! Dem meu bem! Dem meu bem! 
Corte descontínuo. Tinhosa no centro da roda. 
TINHOSA 
Vu nem pode imaginère, mesamí. Olha que jeçuí sambê e requebrê, mas uma piroca daquele tamanho juro por ma mérre mortinha que je nunca vi. 
ANA BAGANA 
Olha que a cachopa bate as botas e a senhora vai fiquér na rua damarguirre... 
RAINHA DOS RAIOS 
Gentem, cherchez le petisco  quonarrivê! 
João Batista se aproxima do balcão. PORTUGUÊS, 50 anos, avental, suado, atende. 
JOÃO BATISTA 
Fogo paulista. 
FRANCESAS 
Uaaaaau!... 
Joãozinho enche a cara em vários goles. Rainha dos Raios se aproxima lânguida, tira um exemplar de FLOR DO MAL da sacola de supermercado e oferece. 
RAINHA DOS RAIOS 
Bonuí, monamí. Va levar uma Flor do Mal pra me ajudar? 
JOÃO BATISTA 
Não, muito obrigado. 
RAINHA DOS RAIOS 
Então toma. Essa é pra vu de graça. 
João Batista vira as costas, engole nova dose e não dá a mínima. A fila começa a andar. 
ANA BAGANA 
Bora, viado! Tá entrando. É presque minuí! 
TERESÃO - INT/NOITE 
Teatro lotado. Francesas sentam-se. Começa o BATICUM. UIVOS da galera.            Luzes amortecem e um canhão percorre a faixa DEM MEU BEM na boca de cena. GRITA uma voz amplificada. 
VOZ 
MEU NOME É DEM! 
A platéia vem abaixo. 
PLATÉIA 
Dem meu bem! Dem meu bem! Dem meu bem! 
Flores são arremessadas no palco. As francesas jogam confete para o alto. Tinhosa pula, grita de dor, sufoca e aplica dose da bombinha broncodilatadora.   Luzes de palco acendem e SOAM os primeiros acordes. Grande empolgação da platéia. Entra o Coronel Arthur, maquiagem expressionista, requebrando paramentado com a fantasia e a peruca da bruxa de pano. Na boca de cena tremula a vela do ebó, a galinha preta com farofa e a garrafa de marafo. Dem canta. 
DEM 
"Convidei a Comadre Sebastiana/ Pra dançar um xaxado na Paraíba/ Ela vei cuma dança diferente/ E pulava que nem uma guariba/ E gritava A-E-I-O-U-Ipsilone/ E gritava": A plateia agita os braços em coro. 
PLATEIA 
"A-E-I-O-U-Ypsilone"! 
DEM 
"A-É-É-I-Ó-Ó-U-Ypsilone/ E gritava": 
Aponta a plateia. 
PLATEIA 
"A-É-E-I-Ó-O-U-Ypsilone"! 
Ana Bagana acende um baseado, traga e rola para as francesas. À medida em vai desfiando o abecedário, Dem abaixa a saia para revelar uma enorme letra "D" tatuada em sua púbis. 
DEM
AAAAaaaaaahhh"! 
PLATEIA 
"AAAAAAAAAAAAaaaaaaaaaaaaaaaaaaah! 
A plateia delira. Alguns arrancam os cabelos, rasgam as próprias roupas. Outros as do próximo. Tem gente chorando convulsivamente descontrolada. Rainha dos Raios passa o baseado para João Batista no final da fila. Um fuma e o outro sorri. Dançam. 
RAINHA DOS RAIOS 
"E gritava/ A-E-I-O-U-Ypsilone". 
Aponta para João Batista que responde. 
JOÃO BATISTA "A-E-I-O-U-Ypsilone"! 
Tem gente catatônica no meio do tumulto geral. Os que rasgaram a própria roupa dançam nus ou quase, em estado de graça. Francesas se sacodem alucinadamente.  No palco Dem se joga no chão cantando. A plateia imita. Tinhosa é arremessada longe estrebuchando. João Batista alucina. Sente o teatro inclinar, desmanchar, luzes borrando, a voz de Dem ecoando distorcida. SLOW MOTION: Dem exibe a tatuagem “D” no palco.   João Batista siderado na letra “D”. Avança para alcançá-la. Quando estende a mão na boca de cena, Mulher de Branco atira uma flor da coxia. Dem intercepta a flor no ar e coloca na orelha de João Batista aos seus pés bebendo o marafo no gargalo. Francesas gritam enlouquecidas jogando confete. Platéia irrompe na direção do palco, invadindo-o.  Dem foge pelas coxias. 
ESTACIONAMENTO DO SHOPPING- INT/NOITE 
Corre na direção de um carro estacionado. Abre a porta. 
CARRO DE DEM - INT/NOITE 
Sentado no banco do carona João Batista agarra Dem num beijo obsceno. 
ESTACIONAMENTO DO SHOPPING - INT/NOITE 
Carro de Dem parte em disparada.  Dulce observa pela janela de um taxi estacionado. 
FRENTE PRÉDIO DO CORONEL - EXT/NOITE 
Carro de Dem entra na garagem. Taxi de Dulce dá uma meia parada em frente ao prédio e parte. Rainha dos Raios sai de trás de uma banca de revistas.                  Anota o endereço do prédio. 
APARTAMENTO DO CORONEL - SALA - INT/NOITE 
A mão cadavérica de Dona Yolanda recolhe a peruca jogada ao lado do par romântico Dem e João Batista, nus e aconchegados sobre o tapete da sala.  Abre a carteira de Joãozinho e conta o dinheiro. 
DONA YOLANDA 
Merreca outra vez, pombas!  Será possível que esta maluca nunca vai pegar um magnata? 
Tira o dinheiro e repõe carteira no bolso da calça de João Batista. 
APARTAMENTO DO CORONEL - COPA - INT/NOITE 
Dona Yolanda destampa a galinha de louça em cima da geladeira e deposita a merreca. A galinha já está cheia de merrecas. 
APARTAMENTO DO CORONEL - SALA - INT/NOITE 
Dem e João Batista gemem. 
DEM 
Ai meu filho, como você é gostoso... Vou te deixar mais arrombado do que o buraco do metrô no Largo da Carioca. 
JOÃO BATISTA 
É o progresso, papai... 
Enlaçam-se sorridentes em êxtase. Sacodem-se cantando o abecedário ritmicamente. 
CASAL
 A-E-I-O-U-Ypsilone. 
Dona Yolanda os observa maquiavélica. 
RUA DESERTA - EXT/NOITE 
Carro de Dem para. A mala abre automaticamente e João Batista é expelido na sarjeta. 
APARTAMENTO DO CORONEL - COPA - INT/DIA 
Dem saracoteia fardada de coronel em volta da mesa. Dona Yolanda frita ovos e linguiças. Enquanto Dem canta, Dona Yolanda vai respondendo desanimada. 
DEM 
"E gritava": 
DONA YOLANDA 
"A-E-I-O-U-Ypsilone"... 
Dona Yolanda coloca o breakfast em frente a Dem, bate três palmas e estala os dedos três vezes sobre sua cabeça. 
DONA YOLANDA 
Sobe, porra! 
Dem sacode, estremece, dá a última gargalhada. 
DEM 
Tchau, querida! 
Baixa o Coronel Arthur. 
CORONEL ARTHUR 
E vamos logo que já estou em cima da hora, porra! Quero esse café hoje bem forte! 
FASTFOWARD: Coronel Arthur devora dois ovos e um salsichão. 
DONA YOLANDA (V.O.) Bom dia, meu neném. 
PRACINHA - EXT/DIA 
Gorda varre a calçada quando chega a patrulha gorila. Policial aponta a cabeça na janela sorrindo. 
GORDA 
Deixa eu acabar de varrer. Dá um rolê e volta daqui a pouco. 
POLICIAL 
Popará tudo! Hoje tem encomenda importante. 
Policial desce uma mala pesada da patrulha. Logo após desembarca a Freira grávida desajeitada. 
POLICIAL 
Vai ficar aí até parir. Depois a gente vê o que acontece. 
GORDA 
Tá maluco? Aqui? 
POLICIAL 
E fica na tua se não quiser voltar pra cadeira do dragão. 
Gorda e Freira encaram-se. Tempo. Vassoura cai. Abraçam-se. 
CASA DA GORDA - SALA - INT/DIA 
Freira e Gorda estão sentadas catatônicas em frente à televisão transmitindo o eterno Jornal da Naite. 
POLICIAL 
Cadê a bufunfa? O patrão está com fome. 
Gorda tira um pacote de baixo do sofá. 
GORDA 
Manda aquele viado vim aqui pegar a encomenda. Quero falar com ele cara a cara! 
POLICIAL 
Acho meio difícil. 
Policial vai saindo. 
GORDA 
Peraí! E as despesa? Aqui também tamo com fome. Agora é três pra comer.
 Policial tira dinheiro do pacote, dá para Gorda e sai. As duas em silêncio.
GORDA (cont)
Está com fome, irmã? 
Corte descontínuo. Freira persigna-se e ataca avidamente um prato de feijoada requentada. Engole um copão de coca cola e arrota. 
GORDA 
Nossa, irmã, não sei como a senhora conseguiu sobreviver nesse estado. 
FREIRA 
Nem eu. Ou melhor, foi com a graça e a fé em Deus Nosso Senhor. 
GORDA 
Pena que ele não tenha conseguido desengatar a senhora da piroca do Policial, né? 
Freira levanta o hábito e mostra o barrigão. Gorda ergue a mão lentamente, hesita e finalmente toca. Alisa a barriga de Freira. Encosta o ouvido. 
GORDA 
É menino. 
CASA DA MORTE - INT/DIA 
Imagens distorcidas. Delegado Flores profere palavras abafadas por ecos de latidos, uivos metálicos. Cabo Negão empurra Freira bruscamente contra a parede. 
CASA DA GORDA - QUARTO - INT/NOITE 
Freira grita. Gorda entra esbaforida no quarto acendendo a luz. 
FREIRA 
Vou enlouquecer! 
Gorda senta na beira da cama. Abraça Freira. 
FREIRA 
Naquela cela ninguém me escutava. Era carta fora do baralho, uma intrusa. 
GORDA 
Conta comigo, irmã. 
Enxuga o suor de Freira com a barra da camisola. 
CASA DA MORTE - SALA - INT/DIA 
Entram o Coronel Arthur e Delegado Flores.  Em seguida Cabo Negão empurrando a cama ortopédica de Freira. OUVE-SE gritos vindos da rua. 
DULCE (V.O.) 
Covarde! 
JOÃO BATISTA (V.O.) 
Canalha! 
COCHEIRO (V.O.) 
Filho da puta! 
Coronel Arthur saboreia o clima. 
CORONEL ARTHUR 
Mais um fim de semana na serra. Isto é que é clima civilizado! 
DELEGADO FLORES 
Pena eu não poder ficar aqui na companhia de vossa excelência. O senhor sabe que a delegacia está lotada. 
CORONEL ARTHUR 
Bota essa terrorista no quarto e passa a chave! 
Cabo Negão sai empurrando a cama de Freira. 
DELEGADO FLORES 
Se vossa excelência me permitir eu gostaria de fazer uma entrevista preliminar de cortesia. Desejo dar boas vindas à hóspede. 
RUÍDO de automóvel chegando. Delegado Flores espreita da janela. 
DELEGADO FLORES 
É o Cadelão. 
CASA DA GORDA - QUARTO - INT/NOITE 
Gorda e Freira insones na madrugada. 
FREIRA 
De vez em quando aparecia um médico e uma mulher trazia comida. Com o tempo fui melhorando. 
CASA DA MORTE - QUARTO - INT/DIA 
Delegado Flores entra no quarto esbanjando simpatia. 
DELEGADO FLORES 
Muito bom dia, Irmã. Está gostando do tratamento que dispensamos aos acidentados aqui na serra? (...) Pergunto eu à senhora: Aquele companheiro que te deixou para trás atropelada no asfalto teria dado o mesmo cuidado e essa recuperação que a senhora está tendo? 
Vai até a janela. 
DELEGADO FLORES 
Existe silêncio mais conveniente para senhora conversar com Deus? (muda a atitude) Pena que a sua mente esteja enxovalhada por rezas bem diferentes... 
Aproxima-se safado. Senta na beira da cama. Toca a face de Freira que tenta se desvencilhar, mas o movimento brusco provoca uma dor aguda. Enquanto Freira agoniza Delegado Flores abre cada botão de sua blusa. 
CASA DA MORTE - QUINTAL - EXT/DIA 
Freira caminha com ajuda de muletas. Policial chega. 
POLICIAL 
O Coronel gostaria de dar uma palavrinha com a senhora. 
CASA DA MORTE - SALA - INT/DIA 
Freira está amarrada numa cadeira. 
CADELÃO - médico ou enfermeiro de 40 e poucos anos - aplica injeção em sua veia. Freira fica grogue. Coronel Arthur e Delegado Flores observam. 
DELEGADO FLORES 
É agora que essa língua precisa se soltar, irmã. Vamos lembrar dos cumpanheros malocados na Ordem das Irmãs Sisters. 
Freira balbucia algumas palavras ininteligíveis e tomba a cabeça para um lado. 
CORONEL ARTHUR 
Olha a cagada, Cadelão! Tá fazendo merda! Ela tem que falar! 
Estala os dedos. Cabo Negão dá um violento murro em Cadelão que cai, limpa a boca, olha perplexo para a cena e vai embora. 
CASA DA MORTE - COZINHA - INT/DIA 
Freira está cozinhando. Delegado Flores amassa seus seios, chupa seu pescoço, abaixa sua calcinha. O vapor das panelas embaça o quadro e quando se dissipa Freira está trepando com Cabo Negão em cima a mesa da cozinha. As panelas fervem. 
FREIRA (V.O.) 
Fui humilhada de todo jeito. Não conseguia mais reagir. Virei uma escrava. 
PRACINHA - EXT/NOITE 
Pracinha deserta. Cães vadios fuçam uma lata de lixo. Freira e Gorda passeiam na madrugada. 
FREIRA 
Fui torturada a perder de vista, mas nunca entreguei ninguém. 
GORDA 
inda mato eles esses filho da puta tudo. 
FREIRA 
Não fala assim, Claire. A maior virtude de um cristão é perdoar. Esta criança é o símbolo do perdão de Deus. 
Gorda fuma pensativa. 
FREIRA 
Me forçaram a denunciar a Rosa de Maio, mas não arrancaram nada de mim. 
CASA DA MORTE - SALA - INT/DIA 
Forte refletor ofusca e ilumina Freira assinando um papel. Microfone à frente. Uma câmera montada em tripé filma a cena em preto e branco. Presentes o Coronel Arthur, o Cabo Negão, o Delegado Flores e Policial. 
DELEGADO FLORES (V.O.) 
Vai falando e assinando o contrato. 
FREIRA 
Danilo Gomes da Silva, Marcia Silva de Freitas, Jandira Novatto, Oswald Ribeiro de Araújo, José Batata... 
Mão de Delegado Flores coloca um pacotão de dinheiro sobre o contrato. 
DELEGADO FLORES (V.O.) 
Conte o dinheiro! 
Freira conta as cédulas. O plano abre. 
CORONEL ARTHUR (V.O.) 
Corta! 
Negão desliga a câmera, apaga o refletor e volta o registro colorido. 
CORONEL ARTHUR 
Bota ela nas políticas! Tem que relatar todos os detalhes. (a Freira) E a senhora olho vivo e faro fino. Fui claro? 
CASA DOS FULANOS - SALA - INT/DIA 
João Batista entra na casa dos pais todo amarfanhado após a noite atribulada com a Dem. Dona Fulana o recebe entusiasmada. Abraça-o. 
DONA FULANA 
Joãozinho! Que alegria te ver logo de manhã, parece antigamente! Mas, meus Deus, que roupa é essa? O que aconteceu? Você já não devia estar no quartel essa hora? (chama) Fulano! Fulano! Venha cá! 
JOÃO BATISTA 
Calma aí, mãe. Não aconteceu nada. É que tenho uma coisa muito importante pra falar com vocês. 
DONA FULANA 
Está com problema em casa, meu filho? Conta pra tua mãe. Que cheiro é esse? Onde você andou, meu filho adorado? Vai já para o banho! Agora! 
João Batista sai atropelando SR. FULANO que chega do corredor. RUÍDO de chuveiro. 
SR. FULANO 
Isso não está me cheirando nada bem. 
DONA FULANA 
Isso está é me deixando num estado de nervos horrível!... Acho que vou passar mal. 
SR. FULANO 
Segura as pontas aí, mulher! Não me venha dar fricote logo de manhã. 
DONA FULANA 
Então tá, vou deixar pra depois do almoço. Você não viu o estado que esse menino chegou? 
Sr. Fulano liga a televisão. 
TELEVISÃO - INT/DIA 
Retrato de Joel estampado no vídeo. 
ALCIDES PEREIRA (V.O.) 
E atenção, muita atenção. O bandido JOEL, caçado há mais de um ano pelas forças de repressão ao terrorismo, acabou de escapar espetacularmente de uma operação gorila numa casa de tolerância em um subúrbio da cidade. 
SALÃO - EXT/DIA 
Leny é levada algemada e empurrada por vários gorilas para dentro do gorilão. Vários clientes são evacuados do Salão enrolados em toalhas e lençóis. Equipe de Nêga Maria filma tudo. 
DELEGACIA - SALA DO DELEGADO - INT/DIA 
Várias armas, munições e a mala de Leny estão expostos sobre a mesa do delegado. 
ALCIDES PEREIRA (V.O.) 
A Operação Frenesi resgatou armas e munições em poder da comparsa do marginal, codinome Erleny. 
TELEVISÃO 
Imagem da carteira de identidade de Leny.   
CASA DOS FULANOS - SALA - INT/DIA SR. FULANO 
Fulana! Fulana! Olha isso. Repara nessa mulher! Olha bem. De onde eu conheço ela? 
DONA FULANA 
E eu é que vou saber? 
TELEVISÃO 
Imagens das Moças do Salão se escondendo e sendo revistadas. Nêga Maria entrevista o Delegado. 
DELEGADO FLORES 
E agora com a prisão desta vagabunda demos o passo definitivo para a captura do terrorista. 
CASA DOS FULANOS - SALA - INT/DIA 
João Batista volta apressado fechando o pijama. 
JOÃO BATISTA O que foi? O que foi? 
SR. FULANO Quase pegaram o tal de Joel! Prenderam a mulher dele na zona com a mala cheia de trabuco. 
João Batista faz menção de voltar para o interior da casa 
JOÃO BATISTA 
Preciso sair... 
mas Sr. Fulano intercepta-o. 
SR. FULANO 
O senhor não vai dar um passo daqui pra fora antes de botar essa história toda em pratos limpos! 
CASA DOS FULANOS - COPA - INT/DIA 
A família toma o café da manhã. 
JOÃO BATISTA 
... e aí o coronel resolveu me passar pro serviço externo. 
SR. FULANO 
Não precisa ir mais pro quartel? Vai fazer o que agora? 
JOÃO BATISTA 
Cabo Negão é que me passa as instruções todo dia. Não tenho mais que bater ponto no quartel não. 
DONA FULANA 
Que coisa mais esquisita assim de uma hora pra outra, sem mais nem menos... Será que vão te botar pra correr atrás de comunista na rua outra vez? Ai meu Deus! É agora que eu ia desmaiar, não é, Fulano? 
SR. FULANO 
Vira essa boca pra lá, mulher! 
DONA FULANA Joãozinho, você devia aparecer aqui era com a notícia que sua mulher está grávida, isso sim. 
JOÃO BATISTA 
Ela está querendo voltar a trabalhar. 
SR. FULANO 
E tem problema? É mais um troco que entra. 
JOÃO BATISTA 
Mulher minha não trabalha fora. 
DONA FULANA 
É assim que se fala, meu filho. O chefe da família é quem manda. Eu nunca precisei trabalhar, mas em compensação... 
SR. FULANO 
Em compensação o que? 
DONA FULANA 
Meu filho, eu quero muito conversar a sério com Dulce, de mulher para mulher. Traz ela aqui. 
SR. FULANO 
Deixa a garota fazer o que ela quiser, mulher! Que implicância! 
DONA FULANA 
Não te mete. 
João Batista levanta da mesa e sai. 
SR. FULANO (V.O.) Aí tem... 
Os Fulanos se entreolham e correm para João Batista. Agarram-no pelos braços e puxam. 
IGREJA EVANGÉLICA - INT/DIA 
Sr. Fulano e Dona Fulana arrastam João Batista de pijama, atemorizado e claudicante rumo ao tablado no fundo da igreja em que PASTOR - 40 anos, branco, terno e gravata, cabelo gomalinado - e vários FIÉIS o recebem. Pastor fala ao microfone. 
PASTOR 
Vamos chegar em volta desta alma e tirar tudo de ruim que tiver atrapalhando a vida do nosso irmão. 
FIÉIS se aproximam. 
PASTOR (cont) 
Fecha a roda! 
Fiéis dão as mãos. No centro João Batista cada vez mais angustiado faz menção de escapulir, mas PASTOR dobra seus braços para trás, subjugando-o. 
                            PASTOR 
Jesus disse: “Estes sinais seguirão os que creem: Em seu nome expulsarão os demônios, falarão novas línguas!”. 
João Batista dá um solavanco desprendendo-se. Curva-se com as mãos retorcidas para trás e dá um gargalhada. 
PASTOR 
Manifesta! Eu te ordeno! 
JOÃO BATISTA 
Tás falano comigo? 
COLETOR DE DÍZIMOS
Firma no caminho de Jesus! Desgarra da mente do nosso irmão! Solta o coração dele! 
JOÃO BATISTA 
Vai me pagar quanto? 
PASTOR 
Quem está aí? 
Aponta o microfone para João Batista. 
JOÃO BATISTA 
Tu num vai arrumá nada comigo, Zé Mané. 
PASTOR 
Quer apostar? O chefe! Eu quero o cabeça! O principal! Eu te ordeno em nome de Jesus: Manifesta! 
João Batista rodopia, estremece, urra, dá três pulinhos e apruma-se desafiadoramente com a voz cavernosa. 
JOÃO BATISTA 
A quem devo a honra? 
Na roda os fiéis começam a entrar em transe. 
FIÉIS 
Fora! Fora! Sai desse corpo que não te pertence! 
JOÃO BATISTA 
É ruim, hein! O que é meu ninguém tasca. 
Dona Fulana chora agoniada na roda atraindo olhares preocupados. 
SR. FULANO 
Segura a pemba aí, mulher! Não pode abrir a roda. 
João Batista investe assustadoramente na direção da mãe. Dona Fulana grita apavorada e desmaia. O Pastor corre a fechar flanco aberto, mas João Batista já escapou correndo alegre e saltitante pela igreja. Fiéis o encurralam na saída e empurram-no de volta ao tablado. Sr. Fulano pinga as gotinhas para reanimar Dona Fulana, mas ela não reage. Ausculta a mulher e alarma-se. 
SR. FULANO 
Fulanaaaaaaa!... 
Fiéis aglomerados apertam o cerco a João Batista urrando descontrolado. Pastor ao microfone. 
PASTOR 
É agora! Mais forte! Fala pra mim quem é você, qual é o seu nome! 
A máscara de João Batista se distorce monstruosamente. Arranca o microfone do Pastor e grita. 
JOÃO BATISTA 
I’m THE DEVIL! 
LEGENDA 
EU SOU O CAPETA! 
O grito de The Devil ecoa. Pastor retoma o microfone. 
PASTOR 
Quem é o chefe aí? Quem é o mais forte? 
THE DEVIL 
É eu mermo, uai! Tem otro? 
PASTOR 
Então vamos ver se você é mesmo o mais forte: Ajoelha aqui nos meus pés, vamos! 
FIÉIS 
Ajoelha! Ajoelha! 
The Devil faz um muxoxo e vai ajoelhando. 
PASTOR 
Vocês estão vendo? Em nossa casa esta entidade se ajoelha aos pés do Senhor! 
FIÉIS
 Aleluia! Aleluia! 
PASTOR 
Por que você grudou nesse rapaz? 
THE DEVIL 
Pra encher ele de pobrema... de dúvida... de medo. Pra deixar ela bem louca. 
PASTOR 
Ela quem? 
The Devil dá uma gargalhada, abaixa e levanta-se transformado em CARMEN MIRANDA. Canta com os trejeitos de praxe. 
CARMEN MIRANDA 
Quando você se requebrar / Caia por cima de mim / Caia por cima de mim / Caia por cima de mim... 
PASTOR 
Vade retro, bicha baiana! 
Carmen Miranda avança no zíper da calça de Pastor, mas os Fiéis intervém e gritam. 
FIÉIS 
Xô vagabunda! Xô vagabunda! 
Dona Fulana desmaiada é levada para fora da igreja nos braços do marido e parte dos fiéis. Mas Pastor não desiste. 
PASTOR 
Sai dele agora, sai! 
João Batista baixa The Devil novamente. 
THE DEVIL 
Eu não! Ele é muito gostosim pra eu dar esse mole. Ainda tem muito couro pra eu tirar desse cavalo. Me dero comida e agora tão quereno tirar o corpo fora? 
PASTOR 
Comida? 
THE DEVIL 
Não sabia? No cemitééériooo! 
FRENTE DE CEMITÉRIO - EXT/NOITE 
Grito de The Devil ecoa junto às badaladas da meia noite. Um taxi estaciona e descem Dulce e Cicrana carregando bolsas. Dulce monta um ebó na porta do cemitério. Atrás de um poste Cicrana a observa acender velas, abrir uma garrafa de marafo, cortar a cabeça da galinha preta, espargir o sangue nas mãos e bezuntá-lo entre as pernas. Bebe uma talagada da cachaça e pulveriza farofa sobre o despacho. 
DULCE 
Quero ele amarrado no meu pé! 
Ocorre uma explosão esfumaçada.  Cicrana apavorada foge correndo de trás do poste.  OUVE-SE a gargalhada distorcida e sinistra de The Devil. 
IGREJA - INT/DIA 
The Devil se debate jogado no chão. 
FIÉIS 
Fora! Fora! 
PASTOR 
Sai daqui, capeta! 
Num salto The Devil se lança babando sobre os fiéis. 
THE DEVIL 
Cêis vão si fudê comigo! 
Roda a cabeça 360 graus e vomita a famosa gosma verde na cara do Pastor. Fiéis cantam. 
FIÉIS 
Derruba, Senhor / Derruba Senhor / Derruba esse povo cheirador. 
The Devil rodopia diversas vezes e a cada vez apresenta uma máscara diferente. Cansado, cai prostrado no chão.   Pastor corre para fora da igreja seguido por fiéis. João Batista volta a si atordoado e vê a igreja acabando de se esvaziar. 
JOÃO BATISTA 
Mamãe! 
FRENTE DE IGREJA  - EXT/DIA 
João Batista chega na calçada a tempo de ver o rabecão levando Dona Fulana. 
JOÃO BATISTA 
Mamããã... 
CASA DOS FULANOS - QUARTO - INT/DIA 
João Batista salta sobre a cama. 
JOÃO BATISTA 
...ãããããe! 
FIM DO TERCEIRO CAPÍTULO

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