COMADRE SEBASTIANA
ISBN 592.229
SEGUNDO CAPÍTULO
DELEGACIA - CARCERAGEM - INT/DIA
São Pedro abre o portão da carceragem. Conduz Gorda e Vizinha pela ala masculina. OUVE-SE algazarra e obscenidades.
RAINHA DOS RAIOS - 20 anos, branco, vestido de combinação feminina, cabelos espevitados, maquiagem exagerada encobrindo hematomas na face, disputa lugar na grade da cela para ver as novatas passando. Reconhece Gorda imediatamente.
RAINHA DOS RAIOS
Claire! Claire!
Gorda corre para ele.
RAINHA DOS RAIOS
Mon Diê! Cê tá toda arrebentéde, monamu. Ques qui si passê?
GORDA
Nem te conto, a maior merda, minha santinha. Aquela varra-de-virre-tripe ali disse pros ômi que eu sou comunista. Ce cruá?
RAINHA DOS RAIOS
Mé quel domage! Quel bobage! Je ne cruá pá de quá.
GORDA
Você também tá toda fodida, cherrizinha. Te batero?
RAINHA DOS RAIOS
Lésse lá pra lá. Já nem sinto mais la dulér, monamu. Ce petisco tá me dando um trato.
Apresenta um RAPAZOLA sórdido, que surge andrajoso na grade abraçando-a por trás.
São Pedro dá uma cacetada em Gorda indicando o caminho a seguir. Empurra as duas detentas pela ala feminina. OUVE-SE as presas se manifestando durante a passagem do trio.
PRESA 1 (V.O.)
Pode ir tirano a butuca daquela magrelinha ali.
PRESA 2 (V.O.)
Que o que, porra nenhuma! Nós combinamo que a próxima caía na minha jurisdição.
São Pedro abre a cela e faz mesura para Vizinha.
SÃO PEDRO
Seja bem vinda, princesa. Aproveite a estada.
Empurra Vizinha pra dentro com um pé na bunda. Gorda se apressa a entrar no vácuo, mas São Pedro barra sua passagem com o cassetete e tranca a cela imediatamente. Aponta o caminho a seguir.
DELEGACIA - CELA FEMININA - INT/NOITE
Vizinha se estabaca no interior da cela. É amparada por PRESA 1 - 50 anos, blackpower e PRESA 2 - 35 anos, esverdeada, olheiras profundas. Esmiuçam Vizinha mais de perto, viram seu o rosto pra lá e pra cá, conferem suas partes. Resmungam.
PRESA 2
Hmmmm, quer saber? Pode ficar com com essa aí também. Estou na boa, deixa pra próxima. Tem problema não.
PRESA 1
Popará, broder; agora sou eu que faço questão de cumprir o combinado. Mas só estou curiosa no que ce vai fazê com essa magricela...
Vozes exaltadas e indistintas dentro da cela. PRESA 3 - 20 e poucos anos, branca, classe média - se aproxima.
PRESA 3
Pra que tanta procupação? Mais cedo ou mais tarde ela cai na roda mermo. Afinal isso aqui é ou não é uma democracia?
PRESA 1
Engano seu, bróder. Isso aqui é o comunismo.
Risadas e gozações. São Pedro bate o cassetete na grade pelo lado de fora. Ameaça.
SÃO PEDRO
Ou essa zona acaba aí dentro ou vai começar a temporada atrás da porta.
DELEGACIA - CARCERAGEM - INT/DA
São Pedro aponta. No fundo da galeria há uma porta fechada com diversos cadeados, fechaduras, etc. As presas debocham.
PRESA 1 (V.O.)
Ai, tô louca por um pau de arara!
DELEGACIA - CELA FEMININA - INT/DIA
Presa 2 salta para o meio da cela.
PRESA 2
Acho que eu vou até pegar uma cor naquela cadeira elétrica americana!
PRESA 1
Até que toda torradinha quem sabe a senhora não fique mais palatável?
Vizinha esbugalha-se, amedrontada.
VIZINHA
Ces tudo já passaram as férias ali?
Presas se aproximam ameaçadoras de Vizinha, encurralando-a no meio da cela.
DELEGACIA - CARCERAGEM - INT/DIA
GRITOS aterrorizantes de Vizinha perseguem Gorda em seu caminho de braço torcido por São Pedro na direção da cela das presas políticas.
VIZINHA (V.O.)
Socorro! Me tira daqui!
Gorda grita.
GORDA
Aproveita pra tirar as teia de aranha dessa caveira!
VIZINHA (V.O.)
Você vai me pagar, sua vaca!
GORDA
Poupança ou conta-corrente?
Chegam em frente à cela. São Pedro dá um solavanco em Gorda.
SÃO PEDRO
A senhora vai ficar hospedada aqui. Se precisar de alguma coisa é só chamar o room service.
Abre a cela das presas políticas e empurra Gorda pra dentro.
RESTAURANTE - INT/NOITE
João Batista e Dulce acabam de jantar. Estão traumatizados com os acontecimentos no passeio de charrete em frente à Casa da Morte.
DULCE
Fica calmo, Joãozinho, já passou. Hoje rm dia isso é normal. Essa gente é assim mesmo. Ce tem que superar isso.
JOÃO BATISTA
Gentalha! É tudo na base da porrada.
DULCE
Mozinho, quer me escutar? Será que vai ser preciso pedir pelo amor de Deus pra você? Deixa isso pra lá! Vai acabar prejudicando tua carreira. Esqueceu que agora somos dois?
Procura a mão de João Batista. Olha-o fixamente.
DULCE
Imagina sua mãe sabendo que você se revoltou no quartel.
JOÃO BATISTA
É verdade; nunca! Pior é o Pastor. Nem pensar! Fica tranquila, mozinha, que eu vou segurar minha onda. Prefiro me enforcar do que dar esse desgosto pra mamãe.
DULCE
Também não precisa exagerar; trata de se controlar. Só isso.
Dulce muda a atitude salientando o decote, projetando os seios. Coloca as mãos de João Batista sobre eles.
DULCE
Quando o bicho estiver te pegando, meu amor, lembra daquele cozido que você adora...
Fumaça de cigarros evola no ambiente. João Batista esvazia duas taças de vinho consecutivas. Dulce observa tudo em silêncio.
SUITE DE HOTEL - INT/NOITE
Dulce entra escorando João Batista totalmente trôpego e joga-o sobre a cama.
Mãos de renda negra exploram a bunda de João Batista. Pegam o consolo preto. Close de João Batista.
JOÃO BATISTA
Aaahhhhhhhh!
Dulce estapeia a bunda de João Batista e grita.
DULCE
Agora! Agora!
Acrobaticamente, João Batista desvira cento e oitenta graus e Dulce pula em cima dele. Sacodem e gozam estrepitosamente. Ainda arfam quando toca o telefone. Entreolham-se. Dulce tira a máscara e atende.
DULCE
Quem deseja?
Estende o aparelho para João Batista.
DULCE
Tua adorada mãezinha. Atende logo essa porra!
Levanta-se e sai mau humoradíssima tirando a fantasia.
CASA DOS FULANOS - INT/NOITE
Dona Fulana chorosa ao telefone contempla a farda de sargento de João Batista pendurada no cabide.
DONA FULANA
Ai, meu filho, você não sabe que tristeza que está essa casa. Até hoje fico esperando você voltar do quartel e você não aparece...
JOÃO BATISTA (V.O.)
Mamãe, são quase meia-noite!
DONA FULANA
Te acordei, Joãozinho? Desculpa tua mãezinha: Hoje eu desmaiei três vezes!
JOÃO BATISTA (V.O.)
Vai ficar tudo bem, mamãe, tudo bem...
DONA FULANA
Sua farda de sargento está um brinco pendurada no cabide. Vai ficar linda em você. Estou tão orgulhosa...
SUITE DE HOTEL - INT/NOITE
Enquanto conversa com a mãe ao telefone, João Batista recolhe o consolo, cheira-o, faz cara feia e levanta da cama.
JOÃO BATISTA
Tá bem, mãe, ok. A ligação está com ruído, acho que vai cair! Tomei sim, comi sim - tudo. Fica tranquila.
Dulce volta, toma o telefone de sua mão e desliga. Deita-se, vira para o lado e apaga o abajur.
SUÍTE DE HOTEL - BANHEIRO - INT/NOITE
João joga o consolo no lavatório, abre a torneira e sai. Volta com a bíblia na mão. Senta-se na privada, abre a bíblia, solta um traque. Dulce reclama.
DULCE (V.O.)
Fecha essa porta pelo menos!
APARTAMENTO DO CORONEL - EXT/ENTARDECER
Nuvens carregadas passam no céu sobre o prédio do Coronel Arthur. Vento espalha algumas folhas secas na calçada.
APARTAMENTO DO CORONEL - COPA - INT/DIA
Na parede da copa está pendurado um retrato do casamento do Coronel Arthur e DONA YOLANDA - franzina, muito branca, olheiras profundas, com o mesmo vestido da Mulher de Branco. Perto há uma geladeira e sobre ela uma galinha de louça com tampa.
Na mesa a descabelada e desmazelada Dona Yolanda monta uma peruca de três andares assentada numa cabeça de isopor. Ouve e desafina cantando junto com um velho disco de ópera que toca todo arranhado na vitrola portátil.
DONA YOLANDA
Ich bin Salome, die Tochter der Herodias, Prinzessin von Judäa!
LEGENDA
Eu sou Salomé, a filha de Herodias, Princesa da Judeia!
Toca o relógio despertador. Dona Yolanda o trava e segue esganiçando a ópera.
DONA YOLANDA
Jokanaan, ich bin verliebt in deinen Leib.
LEGENDA
Jokanaan, eu estou apaixonada pelo seu corpo.
APARTAMENTO DO CORONEL - COZINHA - INT/DIA
Dona Yolanda enche o orifício de uma galinha temperada com farofa e bota para assar. Sai estalando vários ossos enquanto dança cantarolando.
DONA YOLANDA
In deine Haar bin ich verliebte / Deinem Mund begehre ich.
LEGENDA
Estou apaixonada pelos teus cabelos / Desejo tua boca.
APARTAMENTO DO CORONEL - COPA - INT/DIA
Toca o despertador e Dona Yolanda trava novamente. Tira um baseado do decote, uma vela da galinha de louça e acende.
QUARTEL - PÁTIO - EXT/DIA
Coronel Arthur, sempre acompanhado por Cabo Negão, observa alguns recrutas evacuando móveis e utensílios apressadamente pela porta de seu gabinete.
QUARTEL - GABINETE - INT/DIA
O gabinete sofreu uma reforma relâmpago, limpo e repaginado. Coronel Arthur inspira o odor, seus olhos brilham, mas Cabo Negão amarra a cara.
CORONEL ARTHUR
Bem... Razoável, sargento. Mas pode aprimorar ainda mais.
João Batista sorri e enrubesce. Coronel Arthur muda a atitude
CORONEL ARTHUR
E agora vamos logo com isso: Memorando para a direção do Centro de Inteligência da Polícia Gorila!
JOÃO BATISTA
É pra já, meu comandante.
João Batista coloca papel na máquina apressadamente. Cabo Negão fica invocado com a agilidade.
CORONEL ARTHUR
Referência: Organização Terrorista Rosa de Maio!
APARELHO - SALA - INT/DIA
PAISANOS mascarados e armados estouram a porta de um aparelho. Sobre a mesa um mimeógrafo e grande quantidade de panfletos impressos. Surpreendidos, os militantes fogem...
APARELHO - EXT/DIA
...mas são agredidos por gorilas tocaiados no lado de fora.
APARELHO - BANHEIRO - INT/DIA
HOMEM TRUCULENTO - 40 anos, bandana no rosto, enfia cabeça de MILITANTE 1 algemado - 30 anos, branco e barbudinho - no vaso sanitário e dá descarga.
APARELHO - SALA - INT/DIA
Homem Truculento canta arrastando o MILITANTE 1 asfixiado.
HOMEM TRUCULENTO
Vem, vamos embora que esperar não é saber...
Paisano empurra MILITANTE 2, moça branca de uns 25 anos, classe média e algemada.
MILITANTE 2
Viva a Mãe Rússia! Viva a Mãe Rússia!
Homem Truculento aplica-lhe um telefone. O ZUMBIDO soa durante o resto da cena em segundo plano. Militante 2 revira os olhos, desmaia e cai no chão.
Um telefone soa no ambiente e todos olham para baixo. Homem Truculento remove uma tábua solta do piso e descobre o aparelho tocando em meio a um arsenal malocado em baixo do assoalho.
Delegado Flores entra solenemente e atende o telefone.
VOZ (V.O.)
Rosa de Maio?
Delegado Flores impassível. A voz desliga.
QUARTEL - GABINETE - INT/DIA
João Batista datilografa letra por letra.
MAQUINA DE ESCREVER
T - E - R - R - O - R - I - S - T - A
APARTAMENTO DO CORONEL - COPA - INT/DIA
Baseado aceso, Dona Yolanda abaixa o volume da vitrola, disca um número no telefone e sopra fumaça no bocal.
QUARTEL - GABINETE - INT/DIA
Cabo Negão atende o telefonema.
CABO NEGÃO
Gabinete do coronel, às suas ordens. Um momento por favor.
(ao coronel)
É sua esposa, excelência.
APARTAMENTO CORONEL - COPA - INT/DIA
Dona Yolanda ao telefone pitando o cigarro.
DONA YOLANDA
Tuninho? Sou eu, maínha. Já tomou as gotinhas? Cuidado com esse principiozinho de gripinha!...
QUARTEL - GABINETE - INT/DIA
Cabo Negão presta atenção na conversa. Coronel Arthur percebe e fica irritado.
CORONEL ARTHUR
Só um momento, Yolanda.
(ordena)
Troquem o armário de lugar com a xerox!
João Batista e Cabo Negão surpresos, perplexos.
CORONEL ARTHUR
É pra já! Estão esperando o que?
APARTAMENTO DO CORONEL - COPA - INT/DIA
DONA YOLANDA
Não pode tomar ventinho, viu? Volta pra casa antes da chuvinha. Deu no Alcides Pereira que vai cair um toró! Vem logo que maínha já botou a cocó no forno.
Sopra mais fumaça no bocal do telefone.
QUARTEL - GABINETE - INT/DIA
Coronel Arthur tem um ataque de tosse e pousa o telefone na mesa. Um tênue fio de fumaça vai se elevando do bocal do aparelho, ecoando a voz de Dona Yolanda pelo gabinete.
DONA YOLANDA (V.O.)
Tuninho! Tuninho! Você está aí? Responde!
CORONEL ARTHUR
Cadê o memorando? Quero isso pra hoje! Tenho que assinar antes de ir embora!
A fumaça invade a máquina de escrever. Mãos de João Batista datilografam.
MAQUINA DE ESCREVER
R-O-S-A - D-E - M-A-I-O
DONA YOLANDA (V.O.)
Meu bebê, cadê você?
Sentado atrás da escrivaninha, Coronel Arthur submerge na densa nuvem de fumaça que se forma à sua volta. Fala com uma voz melosa que sai da nuvem e ondula pelo gabinete.
CORONEL ARTHUR
ói eu aqui, maínha. Quero cocó... cocó... cocó...
Cabo Negão interrompe o devaneio.
CABO NEGÃO
Comandante, o Senhor permite que a gente faça a troca do armário amanhã? Nós...
A cabeça de Coronel Arthur se projeta fora da nuvem e brada em alto e bom som.
CORONEL ARTHUR
A palavra AMANHÃ acabou de ser suprimida do dicionário neste exato momento!
Some pra dentro da nuvem novamente.
APARTAMWNTO DO CORONEL - COPA - INT/NOITE
Dona Yolanda ao telefone.
DONA YOLANDA
Deu no Alcides Pereira que hoje o pau comeu no centro da cidade.
CORONEL ARTHUR (V.O.)
Atirei o pau no gato-to!
DONA YOLANDA
Diz que foi a maior bagunça, prenderam gente que não acaba mais!
DENTRO DA NUVEM - INT/DIA
Coronel Arthur dança dentro da nuvem
CORONEL ARTHUR
Mas o gato-to não morreu-reu-reu!
APARTAMENTO CORONEL - COPA - INT/DIA
DONA YOLANDA
Mas meu bebê está preparado pra isso, não está?
CORONEL ARTHUR (V.O.)
Tudo sob controle, maínha, tudo sobre controle.
QUARTEL - GABINETE - INT/DIA
Cabo Negão e João Batista arrastam móveis escutando gritos do comandante.
CORONEL ARTHUR
Vou botar esses canalhas todos um-por-um atrás das grades!
APARTAMENTO CORONEL - COPA - INT/DIA
DONA YOLANDA
Vem logo pra casa, Tuninho. Vou preparar um banho bem gostosinho pro meu nenenzinho.
Desliga o telefone e aumenta volume da vitrola. Saracoteia e canta pela casa carregando a vela acesa na direção de um armário ao fundo do corredor.
DONA YOLANDA
"Du bist verflucht"!
LEGENDA
Maldito seja!
APARTAMENTO DE JOÃO BATISTA - COZINHA - INT/NOITE
Rádio toca sambinha acompanhando Dulce despejar comida na panela. Ouve a porta da entrada bater.
DULCE
É você, meu gostoso?
JOÃO BATISTA (V.O.)
Quem mais?
João abraça Dulce.
JOÃO BATISTA
Ai que cheirinho gostoso!
DULCE
Qual? O meu, ou o do que você vai comer?
JOÃO BATISTA
Estou morrendo de fome, mozinha.
DULCE
Ce já devia ter voltado comido do quartel...
Risadas e beijinhos.
JOÃO BATISTA
Melhor nem brincar com isso. Não posso dar pinta, senão...
DULCE
Acho bom. Foi o que nós combinamos.
Corte descontínuo. O casal janta à mesa.
JOÃO BATISTA
Ainda não te contei a maior daquele milico lá em Petrópolis.
DULCE
Qual? Era um festival deles! Quero esquecer a cara daquela gente o mais rápido possível.
JOÃO BATISTA
O coroa, lembra? Se eu te dissesse que ele é meu chefe você acreditava?
DULCE
Tás de sacanagem! Claro que não acredito! Aquele? O cavernoso?
JOÃO BATISTA
O próprio. O novo comandante do quartel! Já começou me tirando o couro.
DULCE
Que porra de coincidência é essa? Só nessa minissérie mesmo. Acho que esse cara vai pegar no teu pé, Joãozinho. É melhor você pedir transferência.
JOÃO BATISTA
Pra tomar coquetel molotov no quengo lá na cidade? Nem morta! Vai você pra ver o que é bom pra tosse...
DULCE
Então aguenta as pontas, meu gostoso. Quando chegar a hora do hora do gorila acertar teu quengo, você lembra do cozido e engole o sapo antes de desmaiar.
Fim do jantar. Radinho toca o bolero, o casal bebe café e fumaça das xícaras embaça as bordas do quadro.
JOÃO BATISTA
Mozinha, você é mesmo de forno e fogão. Estava uma delicia. E essa louça também é show de bola: mamãe vai adorar.
DULCE
Foram as Moças do Salão que deram pra gente, presente de casamento. Mas quem escolheu mesmo foi a Leny.
João Batista muda a expressão e empalidece. Com o guardanapo desembaça rapidamente as margens do quadro. Olham-se preocupados. Pausa. O bolero sai do ar, o rádio chia.
JOÃO BATISTA
Faz tempo que ele não me escora na saída do quartel. Nessa altura já deve estar sabendo do nosso casamento.
DULCE
E daí? Que se foda.
JOÃO BATISTA
Não, não é assim; conheço bem a fera. Te prepara por que ele vai querer tirar vantagem da situação.
APARTAMENTO DE JOÃO BATISTA - SALA - INT/NOITE
O casal se amassa em frente à televisão transmitindo o Jornal da Naite de ALCIDES PEREIRA - 35 anos, asséptico, terno impecável, mulato, voz impostada.
ALCIDES PEREIRA
Manifestantes foram surpreendidos com bombas de gás lacrimogêneo.
Na televisão imagens documentais de estudantes correndo da polícia.
ALCIDES PEREIRA
Presos foram levadas intoxicados para o Hospital Souza Aguiar.
Dulce esbofeteia João Batista e recebe o bofetão de volta. Rolam no chão sofregamente. De quatro, João Batista encara Alcides Pereira na televisão quando Dulce puxa-o violentamente para si. Close de João Batista.
JOÃO BATISTA
Aaaaaahhhhhhhh!...
DELEGACIA - CELA DAS PRESAS POLÍTICAS - INT/NOITE
Gorda se estabaca no meio da cela. Do lado de fora São Pedro acena para alguém. Do chão Gorda observa o ambiente. A um canto Freira reza sentada. Em outro uma JOVEM PICHADORA - secundarista vestida de uniforme escolar - termina de escavar a frase CELACANTO PROVOCA MAREMOTO na parede. Gorda tenta se levantar quando surge Militante 2 fumando um cigarro e estende-lhe a mão.
MILITANTE 2
Bem vinda, companheira. Estamos aqui de passagem, mas nossa raiz não param de se alastrar. Se os cães ainda ladram é sinal que a caravana avança. Viva a mãe Rússia!
Sopra uma poderosa baforada de cigarro na cara de Gorda, que passa a enxergar embaçado. Aproxima-se MANIFESTANTE, moça de 20 e poucos anos, mal ajambrada, também fumando e avaliando Gorda da cabeça aos pés, de frente, de costas e de ambos os lados.
MANIFESTANTE
Não estou lembrada desse perfil tão peculiar em nossas manifestações. A companheira é "Rosa de Maio" ou ...
Sopra a segunda baforada poderosa na cara de Gorda.
GORDA
Não, não. E-e-eu... Me deixa fora dessa encrenca, pelamor de Deus. Eu já tô com muito pobrema. Não sou o que ces tão pensano não. Óia pra mim, tô toda fodida!
Desaba em pranto. ATRIZ - 50 anos, branca, angulosa, maquiagem expressionista, malha preta inteiriça toda esgarçada - insinua-se fumando. Sopra a terceira baforada poderosa na cara de Gorda. A cada vez a visão vai ficando mais embaçada. Atriz enrola um lençol em Gorda.
ATRIZ
A companheira precisa se atualizar; Melhor inventar outra desculpa, porque essa eu tenho certeza que até a anta do delegado não vai cair na suspensão da descrença.
Manifestante marcha resmungando pela cela.
MANIFESTANTE
O povo/unido/jamais será vencido/O povo/unido/jamais será vencido.
Gorda observa incrédula.
MILITANTE 2
Não liga não. Afrouxaram os parafusos dela com um montão de porrada na cabeça.
Oferece um cigarro para Gorda que treme da cabeça aos pés.
GORDA
A larica tá batendo forte pra caralho. Tem comida aqui?
Todas riem.
ATRIZ
A fome vai ser varrida do mapa, companheira! Enquanto isso é melhor começar fazer uma dietinha básica. O verdadeiro revolucionário não tem fome!
Dá a quarta baforada poderosa na cara de Gorda, joga a bituca no chão e pisa.
DELEGACIA - CARCERAGEM - INT/DIA
A cela das presas políticas é um bloco denso e totalmente impregnado de fumaça na escuridão da carceragem feminina.
GORDA (V.O.)
Estou com fomeee!
DELEGACIA - CELA DAS PRESAS POLÍTICAS - INT/DIA
Em meio à cerração uma mão surge estendendo um pão para Gorda. Atrás dele Freira se revela com um barrigão grávido de seis meses. Gorda não sabe se fica horrorizada ou se mata a própria fome.
GORDA
Puta que o pariu!
Gorda abocanha o pão.
APARTAMENTO CORONEL - COPA - INT/NOITE
Disco arranhado continua pulando na vitrola e Dona Yolanda cantando junto enquanto borda uma fantasia em meio a vários apetrechos, enfeites e máquina de costura.
DONA YOLANDA
"Sprich mer! Sprich mer, Yochanaan, und sage mir, was ich tum sol".
LEGENDA
Diga mais, diga mais para mim, Yocanaã, o que eu devo fazer.
Despertador é imediatamente travado ao tocar. Dona Yolanda arranja a mesa para o jantar.
DONA YOLANDA
"Was ist das, des Menschen Sohn? Ist er so schön wie du, Jochanaan"?
LEGENDA
Quem é ele, o filho do homem? Será
tão lindo quanto você, Yocanaã?
ENGARRAFAMENTO - EXT/NOITE
A ópera de Dona Yolanda se funde com a abertura sinfônica da de "O Guarany" de Carlos Gomes iniciando a transmissão do programa oficial.
RÁDIO (V.O.)
Está entrando no ar A VOZ DO BANANAL.
Carros buzinam nervosos. Chuva pesada. Motoristas discutem pelas janelas dos automóveis.
OPALA NEGRO - INT/NOITE
Pelo retrovisor Cabo Negão acompanha Coronel Arthur ansioso sentado no banco de trás.
CORONEL ARTHUR
Tira dessa porcaria! Não suporto mais ouvir essa porra!
Cabo Negão insere fita uma cassete no rádio e gemidos da canção Je t'Aime Moi Non Plus enchem o carro. Gotas de chuva escorrem pelos vidros; os carros parecem se dissolver à distância; motoristas discutem gesticulando em slow motion pelas janelas dos automóveis. Coronel vai relaxando e escorregando no banco de trás com sorriso de beatitude nos lábios. Cabo Negão de olho pelo retrovisor. TROVÕES.
PRACINHA - EXT/DIA
Chove. Dulce desce do ônibus apressada abrindo a sombrinha. Cicrana dormita na calçada, garrafa de cachaça vazia no chão. Cachorro late intermitente fora do quadro. Cicrana desperta com o sacode da filha.
DULCE
Mamãe, acorda! O que é isso? Pirou de vez? Sai dessa chuva! Tá querendo se matar fala logo que eu prefiro cuidar do Cachorro. Aposto que ele está morrendo de fome!
Cicrana dá um salto na cadeira.
CICRANA
Ô, minha filha! Pensei em você hoje o-o dia inteiro... e não é que de repente você apareceu? Amanhã vai dar galinha na cabeça!
Dulce tenta escorar Cicrana. O vento carrega a sombrinha. Tropeçam na entrada da casa dos Cicranos.
CASA DOS CICRANOS - SALA - INT/DIA
Cachorro salta em cima de Dulce. A sala está tomada de garrafas vazias por todo lado. À mesa Seu Cicrano e PARCEIROS jogam baralho, bebem e fumam; Moleques da Rua gritam jogando dados no chão; Cicrana samba na frente da vitrola.
DULCE
Mamãe! Mamãe!
Sacode-a. Cicrana meneia a cabeça completamente aturdida. Dulce abaixa o volume da vitrola.
DULCE (CONT.)
Porra, que bagunça é essa? Será que vou precisar internar vocês?
DONA CICRANA
Minha f-filhota! Alguma coisa ta-tava me dizendo que hoje você vinha me dar essa alegria.
Cicrana aumenta volume da vitrola, pega Dulce, tenta fazê-la sambar. Cachorro latindo à volta. Seu Cicrano ergue-se cambaleante da mesa e Dulce se desvencilha da mãe para socorrer o pai.
DULCE
Papai, que porra é essa que tá acontecendo aqui? O que significa isso?
SEU CICRANO
Isso o que?
Dulce desliga a vitrola. Tudo para. Todos ligados na conversa.
DULCE
Essa comemoração!
SEU CICRANO
E precisa motivo para ser feliz?
Dulce tira um pacote de dinheiro da bolsa e põe sobre a mesa.
DULCE
Precisa sim. Precisa do dízimo da igreja do seu genro.
Dona Cicrana corre para pegar o dinheiro, mas tropeça e fica desnorteada no meio do caminho. Dulce acode equilibrando-a. Moleques da Rua aproximam-se sorrateiros do dinheiro. Seu Cicrano quebra uma garrafa e ameaça-os.
SEU CICRANO
Fora daqui, ratazanas.
Moleques da Rua somem. Dulce senta Cicrana.
DULCE
Vou logo avisando que nem eu, nem o Pastor, nem João Batista - ou quem quer que seja - não vamos contribuir com mais nem um centavo se a bagunça nessa casa continuar desse jeito.
APARTAMENTO DO CORONEL - SALA - INT/DIA
Coronel chega do quartel bufando e soltando fumaça pelos ouvidos. Vai fazendo striptease desde a entrada com Dona Yolanda em seu encalço recolhendo peças da farda no caminho até o banheiro.
DONA YOLANDA
Não precisa nem falar, imagino o engarrafamento! E neném com essa tossinha chata debaixo dessa chuva...
CORONEL ARTHUR
Que tossinha porra nenhuma! Hoje estou cantando até ópera se me der na telha!
Dona Yolanda desce a cueca do Coronel Arthur cantarolando baixinho.
DONA YOLANDA
"Ich bin verliebt in deinem Leib, Yochanaan"!
LEGENDA
Estou apaixonada pelo seu corpo, Yocanaã.
APARTAMENTO DO CORONEL - BANHEIRO - INT/NOITE
Coronel imerso na banheira com um copo de uísque ao lado. Dona Yolanda massageia seus pés.
CORONEL ARTHUR
Uma confusão dos diabos, parecia uma mudança! E que porra de água fria é essa? Até você conspirando contra mim? É um motim? Um complô? Querem minha cabeça?
Estica o pescoço ostensivamente e engole o uísque. Dois pés de galinha boiam no fundo da banheira.
CORONEL ARTHUR
E essa casa está uma bagunça! Você está cagando pra ela! Trata de tirar o avental da gaveta por que Dona Sirigaita vem aí.
DONA YOLANDA
Que ideia maluca é essa? Que ninguém se atreva a vir aqui! Deus me livre! Sou uma mulher reclusa! Não saio de casa, ninguém me ouve, ninguém me vê! Não suporto ver cara de nin-guém! Vade retro! Xô! Um, dois, mangalô três vez!
Coronel levanta bruscamente da banheira ensopando Dona Yolanda. Encosta-lhe o dedo na cara.
CORONEL ARTHUR
Você faz o que eu mandar!
DONA YOLANDA
O que você mandar uma ova! Sou sua mulher, não sua cachorra. Você pode mandar naqueles marmanjos lá no quartel à vontade, mas essa casa aqui é minha jurisdição. Fui clara?
Coronel percebe que perdeu a discussão e baixa o maínha.
CORONEL ARTHUR
Ai-ai-ai, maínha ficou brava! Ai que medinha; bicho vai pegar neném; o berrô que o gato deu, miaaaau!...
Dona Yolanda joga-lhe a toalha e sai.
APARTAMENTO DO CORONEL - COPA - INT/NOITE
Coronel Arthur chega enrolado na toalha. Dona Yolanda bate insistente com uma lata de mantimento sobre a mesa.
DONA YOLANDA
Já está no fim! Trate de encher essa lata até a boca amanhã. Fui clara?
Uma fumaça preta começa a se levantar do forno. Correm para desligá-lo, mas a cocó é colocada sobre a mesa toda esturricada. O coronel quase enfarta, sua toalha cai e bate em retirada apoplético com a bunda de fora. Como se não bastasse o despertador toca. Dona Yolanda grita mau humorada.
DONA YOLANDA
Para!
DESPERTADOR
Calma! Parei.
APARTAMENTO DO CORONEL - QUARTO - INT/NOITE
Coronel Arthur desconta a raiva no travesseiro. Dona Yolanda aparece lânguida e melosa na porta do quarto.
DONA YOLANDA
Neném não vai nem tomar o chazinho hoje?
Coronel bate porta do quarto em sua cara.
Fastfoward: Coronel veste roupa social.
Abre uma gaveta e tira um revólver.
BAR RIO-JEREZ - EXT/NOITE
Televisão atrás do balcão do bar transmite um jogo de futebol. Movimento de GARÇONS. HOMEM de gravata borboleta vende botões de rosa; MULHER DA COBRA toca reco-reco e canta. Está presente a fina flor do underground bananeiro.
Coronel Arthur chega e senta em mesa afastada. Os desbundados da fauna presente reparam em sua caretice. GARÇOM traz uma cerveja que Coronel bebe rapidamente em cortes descontínuos. Coronel Arthur estala os dedos e surgem outra e outra e outra garrafas.
Aproxima-se MICTÓRIO - mulato nordestino, 25 anos, bandana, miniblusa.
MICTÓRIO
Com licença. Avevú de fô?
CORONEL ARTHUR
O que?
Mictório mostra o cigarro apagado.
CORONEL ARTHUR
Não tenho porra nenhuma, nem fumo.
MICTÓRIO
Ne fumê pá? Tré bian. Le vício mata!
CORONEL ARTHUR
E o que você está fazendo com essa porcaria na mão? Já vai tarde!
Mictório puxa uma cadeira.
CORONEL ARTHUR
Na-na-não. Não vai se aboletando que hoje eu não estou para conversa fiada.
MICTÓRIO
Ah, bon? Non parrece. La velô que çantornô troá cervèje é tipique de quem tá precisano desabafèrre...
Chega outra cerveja e outro copo. Mictório senta-se imediatamente. Enche o copo.
MICTÓRIO
As vez tem que dar le bra a torcê, messiê. La vi é come ça.
CORONEL ARTHUR
O que um hippie sujo como você sabe da vida? Já se olhou no espelho?
MICTÓRIO
Nespèlhe infelizmente je vèje lumanitê perdida.
CORONEL ARTHUR
Que perdida o caralho! Tem que enfiar o rabo entre as pernas e ficar calado se não quiser se foder de verde e amarelo, isso sim!
Mictório fita penalizado o Coronel Arthur. Na televisão sai um gol e todos comemoram. Buzinas e gritos distraem Coronel Arthur e Mictório, mas voltam a se encarar.
CORONEL
Tá olhando o que?
MICTÓRIO
Tô veno unóme que necessite urjaman de se cuidèrre.
Mictório engole o copo inteiro de cerveja, levanta, arrota, dá uma pirueta e sai.
BAR RIO-JEREZ - MESA DAS FRANCESAS - EXT/NOITE
Mictório chega na mesa das Francesas. Senta-se na companhia de MARILHÃO, 30 anos, largadona, macha, dente de ouro; - TINHOSA, 42 anos português branco baixinho, roliço, camisa apertada na barriga, careca; SURAMA, 26 anos, mulato com verruga preta entre os olhos, vestindo terno e gravata; e ISILDINHA, 30 anos, branco, pobre e mal ajambrado.
TINHOSA
Non falê que ce não ia arrumèrre nada com ce lá? Non deu ótre! Trata de baixê la cervèje imediateman!
MICTÓRIO
Nossa! Que óme etrange, gentem... Frio de pedra, quase me bateu!
SURAMA
Pode ser frio, mé quilé gostêse, é.
TINHOSA
Ai, Notre Dame Trás-os-Montes há de me ajudar! Olha que mãozona! Deixève il me cobrirre toda de porrada.
ISILDINHA
Vai lá, Tinhosa. Diz que gostou da mão pesadona dele.
TINHOSA
Escandal an publique, moá? Jamé! Sou suí uma cachoupa fina. Ce choses celemã no partiquilé...
ISILDINHA
Partiquilé igual quando dei o flagra na senhora chupando pau do garçom no banhèrre? Lembra, Surama?
SURAMA
A portuguesa quase morreu engasgada, eu também vi.
Tinhosa tosse várias vezes, tira uma bombinha broncodilatadora da bolsa e aplica duas doses na boca.
Chega ANA BAGANA, 25 anos, morena, óculos fundo de garrafa, bem tratada, hippie de boutique, corpão.
ANA BAGANA
Nossa! Isso aqui hoje tá tresanimê!...
Arrasta uma cadeira e senta-se com as Francesas.
MARILHÃO
Pensei que vuzéte de plantão hoje, Ana Bagana.
ANA BAGANA
Hoje não, cherri. Fiquei foi horras pra comprar ingrèsse pro show da Dem no Teresão. La file estève enooorm.
ISILDINHA
Tô a economizê o que tenho e o que não tenho pra ir nesse show.
SURAMA
Diz que tem gente saindo pelo ladrèrre.
Mictório vê Coronel Arthur levantar da mesa e seguir na direção do balcão.
MICTÓRIO
Ulalá, regardelá, Tinhosa! O bofe está indo mijar!
TINHOSA
Ai, Notre Dame, chega me deu vontade de fèrre xixi ossi.
MICTÓRIO
É votre chance, bicha. Aposto uma cervèje come a senhora vai se dar bem manjano quelle rôla.
TINHOSA
Ó, pá, vou na maciotte presque um bofe desses pode me daire um revertèrre.
SURAMA
Rian que a senhora já não estèje acostumette, bian sir.
MARILHÃO
Vai logo, viado. Aquela piroca tá te esperando, porra!
Tinhosa aplica mais duas doses da bombinha e vai. Passa MENOR oferecendo amendoim.
MENOR
Vai um torradinho aí, bicha?
ISILDINHA
Sai, pivete abusado!
MARILHÃO
Ai gente, compra um saqcolé pra mim, depois eu pago. A larica tá acabando comigo. Ce bagulho é bom méme, hein, Ana Bagana?
ANA BAGANA
Acabou de chegar na Gorda. Comprei logo an vidrre de maionese cheio antes que aquèbe.
MARILHÃO
Quel espetacle!
ANA BAGANA
Fica fria, Marilhão. Vou te dèrre an baseado pra você se recuperê desse fase pé de chinèle.
MARILHÃO
Merci, minha santinha. Ce baseado je vé guardê pro show da Dem. Je te promesse.
BAR RIO-JEREZ - BANHEIRO - INT/NOITE
Coronel Arthur urina. Tinhosa assustadíssima ao lado de olhos pregados em seu pênis. Coronel percebe, Tinhosa sorri simpática.
CORONEL
Que que tá olhando minha pica, viado?
Tinhosa sufoca num ataque de tosse.
TINHOSA
N-não. Nespá come ça que o senhor tá pensano, engano do senhor! Je suí crente!
CORONEL
Crente o caralho, bicha filha da puta!
TINHOSA
Ó pá, se tivesse estudado eu podria seire pastore evanjelique, medician, anavocá, anangeniê...
Coronel Arthur derruba Tinhosa com um soco na cara. Chuta. Lava as mãos sorrindo para o reflexo de Tinhosa no espelho, cara ensanguentada e cuspindo a dentadura no chão.
TINHOSA
So-socorro, Mictório!
BAR RIO-JEREZ - EXT/NOITE
Coronel Arthur volta trôpego derrubando as garrafas em cima de sua mesa. Luzes ofuscam-no, o letreiro do bar desfoca, tudo gira. Coronel Arthur desaba na cadeira. Francesas sobressaltadas.
ISILDINHA
Regardelá! O bofe voltou!
SURAMA
Tá na cara que a cachoupa levou um revertèrre no banhèrre. Meiér alguém ir lá conferri...
MICTÓRIO
É com moá méme.
Levanta-se, apruma, dá uma pirueta e vai.
BAR RIO-JEREZ - BANHEIRO - INT/NOITE
Tinhosa sangra no chão, a dentadura ao lado. Entra Mictório.
MICTÓRIO
Tás me deveno ine cervèje, viado.
BAR RIO-JEREZ - EXT/NOITE
Mictório avança escorando Tinhosa entre as mesas do bar. Francesas se levantam. Burburinho. FREQUENTADORES alarmados.
Passam pela mesa do Coronel Arthur. Mictório ameaça.
MICTÓRIO
Se vu pense que ça va ficar por isso méme, tá tresanganê, messiê!
As francesas se aproximam.
SURAMA
Vamos der quiche na delegaci.
CORONEL
Delegaci é a puta que os pariu! Mais respeito, bando de viados escrotos!
MARILHÃO
Ele rebentô a carra da portuguèse no banhèrre.
FREQUENTADOR, fortão, 40 anos, suspende Coronel Arthur pelo colarinho.
FREQUENTADOR
Respeito é para quem se dá ao respeito! Quero ver dar porrada num igual a você.
ANA BAGANA
Calma, gentem. Olha o escandál! Lelegance an premiér lugar.
Mictório furibundo esquece o francês e replica com carregado acento nordestino.
MICTÓRIO
Que elegância é o caralho! Vamos ficar levando porrada a vida inteira desses gorilas sem fazer nada? Ninguém é saco de pancada!
Parte dos frequentadores gritam.
FREQUENTADORES
Bicha! Bicha! Bicha!
MICTÓRIO
Vão tomar no cu vocês também!
ISILDINHA
É isse méme; van se fodèrre todo mundo!
Coronel Arthur empurra o Frequentador que se levanta, derruba a mesa e pula sobre ele. Os demais partem pra cima das francesas. O tempo fecha. Mesas e cadeiras voam para lá e para cá. Francesas se defendem à sua maneira: Marilhão derruba vários marmanjos na porrada; Isildinha quebra garrafa e corta cara de um VALENTÃO; Ana Bagana sobe em uma mesa e asperge a bombinha de Tinhosa sobre a confusão.
ESTAMPIDO de tiro. Gritaria. Todos se abaixam. SIRENE do gorilão chegando.
Chega o gorilão. Frequentador jaz no chão com um tiro na testa. Coronel Arthur foge cambaleando com as Francesas em seu encalço. Na fuga os gorilas acabam de golpear Tinhosa deixando-a desmaiada na sarjeta e detêm Ana Bagana. Todos levam cassetadas sem distinção. Levada para o gorilão, Ana Bagana afeta sex appeal para cima do gorila.
ANA BAGANA
Ai moço, me deixa. Tenho plantão no hospital amanhã, não posso faltar.
Patola o Gorila.
GORILA
Vou aplicar uma injeção na senhora quando chegar na delegacia.
Chega a ambulância. Gorila 2 intima Ana Bagana.
GORILA 2
Carrega aquele ali.
Aponta Tinhosa toda estropiada caída na sarjeta. Ana Bagana se esforça para arrastá-la para a ambulância sem êxito.
TELEVISÃO
ALCIDES PEREIRA reporta últimas notícias.
ALCIDES PEREIRA
Tragédia em nova ação terrorista choca a cidade nesta noite, com o assassinato de um lutador de artes marciais. Vários elementos foram presos.
Imagens dos desbundados escondendo os rostos na delegacia.
ALCIDES PEREIRA (V.O.)
E outros levados para hospital de Ipanema...
Imagens de Tinhosa entubada em aparelho de ventilação com Ana Bagana ao lado escondendo-se atrás de enormes óculos escuros.
ALCIDES PEREIRA (V.O.)
...após quebra-quebra generalizado promovido pela milícia terrorista Rosa de Maio.
Imagens de GARÇONS levantando as mesas, as cadeiras, recolhendo vidros quebrados.
Reporter NÊGA MARIA - 35 anos, expedita e empática - entra em cena.
NÊGA MARIA
Estamos aqui com o Delegado Flores que investiga a milícia terrorista Rosa de Maio. Delegado, conte aos nossos telespectadores em que pé está a investigação?
DELEGADO FLORES
Estamos prestes a botar o pivô dessa ação na cadeia. Vamos dar um fim nessa bagunça aqui no Bananal.
Mostra cartaz de caça aos terroristas. Zoom in no retrato de JOEL.
APARTAMENTO CORONEL ARTHUR - SALA -INT/NOITE
Dona Yolanda dormita no sofá, a televisão já fora do ar, chuviscando. Sobressalta-se com pancada na porta. P.O.V. do olho mágico não mostra ninguém, mas as batidas continuam. Dona Yolanda, empunhando a espada do Bananal abre a porta e se depara com Coronel Arthur desabado no chão do corredor do prédio.
DONA YOLANDA
Tuninhooo! Onde você foi se meter?
Dona Yolanda aplica gelo na contusão do rosto de Coronel Arthur. Ajeita-lhe um travesseiro, pita o baseado e sopra a fumaça. Coronel Arthur estremece, vira para o lado e dorme.
DELEGACIA - CELA DAS PRESAS POLÍTICAS - INT/DIA
São Pedro abre a cela e as presas se alvoroçam. De porrete na mão, intimida Gorda acuada ao fundo.
SÃO PEDRO
Melhor a senhora vir por bem pra não se arrependê depois...
FREIRA
Ela não tem nada a ver com isso!
São Pedro puxa Gorda para fora da cela.
CARCERAGEM - FRENTE CELA DAS PRESAS POLÍTICAS - INT/DIA
Gorda cara a cara com Delegado Flores.
DELEGADO FLORES
Precisamos bater um papinho.
GORDA
Tô à disposição, dotô.
São Pedro torce o braço de Gorda até a porta ao fundo da galeria escancarada emanando uma luz estranha. Empurra Gorda para dentro.
PRESAS POLÍTICAS (V.O.)
Resista, companheira! Resista!
DELEGACIA - CELA DAS PRESAS POLÍTICAS - INT/DIA
Freira cai ajoelhada, persigna-se e começa a rezar.
DELEGACIA - SALA DE INTERROGATÓRIO - INT/DIA
Gorda fica apavorada com a visão da cadeira do dragão. Faz menção de sair correndo, mas dois ENCAPUZADOS entram na sala impedindo-a. Amarram Gorda na cadeira, derramam água de um balde em sua cabeça.
DELEGADO FLORES
Bem vinda à nossa suíte presidencial.
GORDA
Eu não sei de nada, dotô! Pode correr minha gira lá fora que o senhor vai provar o que eu tô falano!
Delegado Flores estapeia a cara de Gorda. Entra Policial com o pacotão de maconha e abre sobre a mesa
DELEGADO FLORES
E o que seria isso aqui?
GORDA (V.O.)
Ai, tô fodida.
DELEGADO FLORES
Tá nada, madame. A senhora acaba de se salvar. É só dizer onde a senhora adquiriu a mercadoria.
Gorda desabafa aos gritos.
GORDA
Meu negócio é esse mermo! Vão se foder vocês todos que eu já estou de saco cheio dessa merda! Pode me matar! Quero morreeer!
DELEGACIA - CELA DAS PRESAS POLÍTICAS - INT/DIA
Gritos de Gorda ecoam na cela. Presas políticas ficam pregadas na grade, alarmadas.
DELEGACIA - CELA FEMININA - INT/DIA
Vizinha se aproxima sorrindo da grade.
DELEGACIA - SALA DE INTERROGATÓRIO - INT/DIA
Gorda soluça. Encapuzados e Policial riem baixinho. Delegado Flores se contagia e a hilaridade evolui para gargalhadas e aplausos. Delegado Flores estapeia Gorda novamente.
GORDA
Nós vamo se encontrar no inferno, seus filhos da puta!
Delegado Flores se abaixa em frente a Gorda.
DELEGADO FLORES
Parabéns! Só lá mesmo que a senhora vai poder escolher entre o bem passado, o mal passado ou no ponto. Por que aqui vai ser do jeito que eu quiser.
Gorda cospe na cara de Delegado Flores. Encapuzado gira a maricota, Gorda estribucha e desmaia. Corte descontínuo. Gorda é amarrada de pernas abertas sobre a mesa. Policial acende um grosso e enorme charuto de maconha, aspira e o introduz em sua vagina. Encapuzados dançam e cantam ao redor da mesa soprando o charutão acelerando a carburação.
ENCAPUZADO 1
Para bailar la bamba se necessita una poca de gracia.
ENCAPUZADO 2
Una poca de gracia y otra cosita, arriba y arriba.
POLICIAL
Ai arriba y arriba por ti seré, por ti será, por ti seré.
FASTFOWARD: Carburação chega aos pentelhos. Gorda berra.
GORDA
É o Ladrão Boliviano!
A cantoria cessa. Policial retira o cotoco restante de Gorda e apaga-o com uma cusparada.
POLICIAL
Posso dar uma trava nessa bagana, dotô?
DELEGADO FLORES
É impressão minha ou a senhora está sempre cercada de viado?
Toca o telefone. Delegado Flores atende.
ESCRIVÃO (V.O.)
Ligação do comando da Policia Gorila. Pode passar?
DELEGADO FLORES
Silêncio!
Gorda aproveita a ocasião para gritar com toda força. Sua boca é entupida com um torrão de maconha e lacrada com fita adesiva.
Delegado Flores respira, penteia cabelo e enxuga o suor.
DELEGADO FLORES
Pode transferir.
QUARTEL - GABINETE - INT/DIA
Cabo Negão ao telefone, Coronel Arthur na extensão.
CABO NEGÃO
É o Delegado Flores?
DELEGADO FLORES (V.O.)
Olá, amigo, como tem passado? E vossa Excelência, como vai?
DELEGACIA - SALA DE INTERROGATÓRIO - INT/DIA
DELEGADO FLORES
É pra cantar para subir?
QUARTEL - GABINETE - INT/DIA
CABO NEGÃO
Não, não é sobre isso. Estamos sabendo que a senhora Claire Montenegro se encontra hospedada no seu hotel.
DELEGADO FLORES (V.O.)
Positivo, Cabo. Positivo.
CABO NEGÃO
Pois temos ordens superiores expressas para liberar o elemento!
Coronel Arthur fala na extensão.
CORONEL ARTHUR
Trate de dar um fim nessa papelada, devolver o material pra ela e cale o bico se não quiser perder o emprego! Fui claro?
DELEGACIA - SALA DE INTERROGATÓRIO - INT/DIA
Delegado Flores gagueja.
DELEGADO FLORES
S-sim, excelência! Vamos cuidar disso imediatamente.
Ouve o RUÍDO de interrupção da chamada. Olha furibundo para Gorda.
DELEGADO FLORES
Desamarra ela, vão saindo e chama o viado pra dar um trato na cara dessa mocreia. Bota uma roupa desova ela em casa.
Aponta Gorda.
DELEGADO FLORES
E a senhora não pense que vai se livrar de mim não! Quero a data e a hora da entrega da muamba.
Encaixa um cartão de visitas entre os dedos de um pé de Gorda amarrado na mesa. Vai saindo.
GORDA
Pra pegar ele só indo lá na Bolívia.
DELEGADO FLORES
E metade de tudo é meu até eu botar a mão nesse maricón!
PRACINHA - EXT/DIA
Patrulha gorila desova Gorda na porta de casa. Moleques da Rua ajudam-na levantar da calçada e a conduzem para casa.
CASA DA GORDA - SALA - INT/DIA
Gorda contabiliza as perdas do empastelamento da casa e chora em meio à destruição. Moleques preocupados.
MOLEQUE 1
Ela tá esquisitona, melhor a gente dar o fora daqui. Parece que vai dar um troço.
MOLEQUE 2
Que vai nada! Daqui a pouco começa o movimento tudo de novo, quer valer quantas banana?
Gorda grita histérica. Moleques da Rua se assustam e fogem. Gorda tira o cartão de visitas do bolso e disca o número. RUÍDO de atendimento.
DELEGADO FLORES (V.O.)
Pois não?
GORDA
Se não trouxer minha televisão de volta vou botar a boca no mundo, seu filho da puta!
OUVE-SE batidas na porta. Entra o Cabo Negão.
FIM DO SEGUNDO CAPÍTULO.