RUÍDOS de trânsito, buzinas, sirenes e apitos.
RUAS - EXT/DIA
Céu fechado. RUMORES de trovões distantes e ECOS de um discurso a princípio ininteligível ao longe.                                               
Um Opala Preto chapa branca avança escoltado por motocicletas e uma patrulha da POLÍCIA GORILA com sirene ligada. Populares acompanham passagem do cortejo por diversas ruas.
OPALA PRETO - INT/DIA
CABO NEGÃO, galalau negro ao volante, maus bofes, 25 anos, confere o banco de trás do Opala pelo retrovisor. Conduz o CORONEL ARTHUR, branco, asséptico, 50 anos, muito ansioso e circunspecto. Ambos fardados.
Os ecos de discurso e trovões tornam-se gradativamente mais próximos e definidos no decorrer da cena.
DISCURSO (V.O.)
Não posso deixar de agradecer à minha família, minha esposa e maior incentivadora, a Sra. Sirigaita Cavalcanti.
Aplausos.
QUARTEL - PALANQUE - EXT/DIA
Ao fundo de um palanque coalhado de autoridades civis e militares DONA SIRIGAITA CAVALCANTI, 50 anos, rígida, mais pra decadente, peruca de dois andares, reza um terço de braços com a amiga íntima DONA ESTROPÍCIA, praticamente um clone seu.                                                                   
MAIS À FRENTE
Discursa o CORONEL CAVALCANTI, mesmo perfil do outro, o Coronel Arthur, mas um pouco mais velho.
CORONEL CAVALCANTI
... E aos gêmeos Fedelho e Pentelho, esses anjos que Deus me deu!
MAIS ATRÁS
FEDELHO E PENTELHO, 10 anos, gêmeos obesos, mesma roupa, divertem-se lutando boxe e colando melecas na roupa de Dona Sirigaita desvairadamente absorta nas orações. A amiga Estropícia os flagra e dá um cascudos em cada.
QUARTEL - PÁTIO - EXT/DIA
ESQUADRÃO CAVEIRA, pelotão de soldados entre 20 a 25 anos, liderados por INSTRUTOR um pouco mais velho, está perfilado hierático em trajes de cerimônia.
O Opala chega ao palanque.                                                     Cabo Negão desce, abre a porta do passageiro e desembarca o Coronel Arthur.
QUARTEL - PALANQUE - EXT/DIA
Coronel Cavalcanti continua discursando.
CORONEL CAVALCANTI
E acima de tudo à minha filha Periquita, luz dos meus dias, flor da minha existência!
RUÍDO incômodo e altíssimo de microfonia.
MAIS ATRÁS
PERIQUITA CAVALCANTI, moça tetraplégica e oligofrênica, 30 anos, amontoa-se desajeitada em cadeira de rodas tendo ao seu lado a BABÁ, mau encarada, branca, 40 anos.
QUARTEL - PÁTIO - EXT/DIA
Entre as fileiras do esquadrão OUVE-SE sussurros de deboche, risadas gaiatas e imitações do discurso, mas o Esquadrão Caveira continua impecável, estático.
PONTO DE ÔNIBUS - EXT/DIA
Uma FREIRA 35 anos, branca, vestida a caráter, espera o ônibus no ponto entre outros passageiros. Olha ao redor. Do outro lado da rua vê chegar JOEL, 35 anos, bonitão, camuflado, boina, barba por fazer, basicamente clone de Che Guevara que caminha em sua direção. Aproxima-se e canta quase no pé do ouvido de Freira.                                         
JOEL
I don't want to stay here ya / I wanna to go back to Bahia.
Faz um sinal para que ela o acompanhe.
Freira entende o recado e se afasta.
RUA - EXT/DIA
Joel está transferindo vários panfletos da maleta para a bolsa de Freira quando surgem dois Gorilas apontando armas.
GORILA 1
Vai ir largando essa porra toda aí no chão.
Joel rapidamente saca arma e atira em Gorila 1.
Freira arregaça a saia e dá uma voadora na mão do outro.                  A pistola do GORILA 2 dá três cambalhotas e cai exatamente na mão direita de Freira já com o dedo no gatilho. ESTAMPIDO. Cai o Gorila 2.
Joel e Freira correm. 
MAIS À FRENTE
Um carro em alta velocidade atropela Freira atravessando a rua apressada e foge sem prestar socorro. Freira agoniza no asfalto, bolsa aberta, panfletos espalhados. SIRENE de ambulância. Joel estala dois dedos na esquina e evapora no ar.
Chega a ambulância. PARAMÉDICOS afastam PEDESTRES acotovelando-se na cena do crime. Recolhem Freira numa padiola e em seguida os cadáveres dos dois Gorilas. São todos amontoados e partem na mesma caçamba.
Durante toda a ação continua ecoando o discurso do Coronel Cavalcanti.
CORONEL CAVALCANTI (V.O.)
... que essas almas nunca se desviem dos caminhos da retidão moral e do amor à pátria!
APLAUSOS.
QUARTEL - PALANQUE - EXT/DIA
Coronel Cavalcanti suspende a espada no ar.
CORONEL CAVALCANTI
Passo a poderosa espada da POLÍCIA GORILA DO BANANAL...
Encosta a espada no pescoço do Coronel Arthur.
CORONEL CAVALCANTI
... ao ilustríssimo Coronel Arthur Frota da Silva!
Toque de clarim. Bandeira do Bananal ondula placidamente no mastro.                                                                    APLAUSOS.
MAIS ATRÁS
A mulher do Coronel Cavalcanti suspira aliviada. A amiga abana.
DONA SIRIGAITA
Não via a hora de Cavalcanti largar essa confusão pra lá. Já estava ficando uma pilha com essa situação.
DONA ESTROPÍCIA
Sirigaita, cadê a família do Coronel Arthur?
DONA SIRIGAITA
Pelo que me consta a mulher dele é tão doente que nem sai de casa.
DONA ESTROPÍCIA
Coitado. Com uma mulher assim e ainda vai assumir o quartel no meio dessa confusão toda? Que Deus Nosso Senhor o proteja.
Persigna-se.
DONA SIRIGAITA
... e nos deixe fora dessa roubada, amém.
Persigna-se também.
DONA ESTROPÍCIA
E vai se preparando pra aturar homem o dia inteiro dentro de casa! Já conversamos sobre isso...
DONA SIRIGAITA
Ai, meu Deus, e chato do jeito que ele está ficando...
DONA ESTROPÍCIA
Ficando?
QUARTEL - PÁTIO - EXT/DIA
Uma nuvem oculta o sol. Troveja mais perto e alguns relâmpagos esparsos estão chegando. O vento ondula um pouco mais forte a bandeira do Bananal.
QUARTEL - PALANQUE - EXT/DIA
Coronel Arthur recebe a espada e se dirige ao microfone.  Não consegue disfarçar seu nervosismo.  MICROFONIA.
MAIS ATRÁS
Periquita Cavalcanti emite um esgar pavoroso e altíssimo. Todos se assustam. Dona Sirigaita sacode a Babá, que sacode a cadeira de rodas, e aí a Periquita sossega.
MAIS À FRENTE
Coronel Arthur pigarreia, enxuga o suor, mãos trêmulas.  Ergue a espada ao alto. TROVÃO.   
CORONEL ARTHUR
Gorilas da minha terra! Neste momento eu sou aquele que aceita e aquele que dá!
QUARTEL - PÁTIO - EXT/DIA
Em meio ao Esquadrão Caveira, JOÃO BATISTA, branco, 22 anos, boa pinta, imobilizado como os demais, acha a fala muito estranha.
JOÃO BATISTA (V.O.)
Que porra é essa?
João Batista encara enfática e significativamente o Coronel Arthur titubeando na frente do microfone.
QUARTEL - PALANQUE - EXT/DIA
Nas coxias as madames olham preocupadas para o céu. Assustam-se com novo trovão. Fedelho e Pentelho imitam o estrondo, mas o pai os estapeia e ficam quietinhos. Periquita gargalha entortando-se na cadeira de rodas. Babá sacode.
MAIS À FRENTE
Coronel Arthur já está perturbado com o olhar inquisitivo de João Batista perfilado ali na sua frente.  Chispas de ambos olhares se cruzam no ar.  Coronel Arthur pigarreia e levanta a espada.
CORONEL ARTHUR
Não vim aqui prometer nada! Mas resguardar o pátria, a coragem e os v-valores morais da nossa sociedade!
QUARTEL - PÁTIO - EXT/DIA
MICROFONIA, DISTORÇÕES E TROVOADAS INSISTENTES.                                               
Um portão ao fundo do pátio abre-se rangendo ferros.  Do fundo de suas trevas ecoam gritos lancinantes.
Na escuridão materializa-se o espectro da MULHER DE BRANCO, mais para velha, doentia, descalça, diáfana e iluminada por fulgores próprios, flutua a dois palmos do chão.
O discurso se mistura aos gritos.
CORONEL ARTHUR (V.O.)
Meu dever é preservar a Revolução caveira que marca com ferro os inimigos de nossas conquistas!
Começa uma chuva fininha. Mulher de Branco avança em meio ao esquadrão transpassando cada soldado. Carrega bolsa.  OUVE-SE Periquita Cavalcanti esganiçar descontrolada durante todo o trajeto.                                                
Relâmpagos verdes riscam o céu.  Mulher de Branco transpassa o soldado João Batista, deixando-o momentaneamente tomado por forte luz esverdeada.  Segue e para em frente ao palanque.
QUARTEL - PALANQUE - EXT/DIA
Coronel Arthur, ainda siderado nos olhos agora verdes de João Batista, discursa com bastante dificuldade.
CORONEL ARTHUR
Meu compromisso é-é cumprir a Lei de Seg-gurança Nacional!
Desequilibra-se com a espada ao alto ao perceber a presença da Mulher de Branco sorrindo sinistra em baixo do palanque, cabelos ralos agitados pelo vento cada vez mais forte.
QUARTEL - PÁTIO - EXT/DIA
Soldados estáticos.
JOÃO BATISTA (V.O.)
Caralho, vou ter que engolir esse cara?
QUARTEL - PALANQUE - EXT/DIA
Fedelho e Pentelho se aproximam da beira do palanque apontando a Mulher de Branco.  O vento uiva e as amigas seguram as perucas de dois andares.
MAIS À FRENTE
Coronel Arthur afinal se desequilibra, a espada cai cravada no chão próxima ao vulto da Mulher de Branco. O coronel se escora no suporte do microfone e quase caem, ambos.
MAIS ATRÁS
As duas madames, preocupadas com a situação e a meteorologia, tentam se recompor.
DONA ESTROPÍCIA
Menina, o homem já está dando defeito antes de começar? É píssico!
Dona Sirigaita se adianta e cutuca o marido.
DONA SIRIGAITA
Cavalcanti! Cavalcanti! Dá uma maracutaia pra ele que num estante ele acalma.
MAIS À FRENTE
Cabo Negão surge com guarda-chuva e Coronel Cavalcanti com um copo de maracutaia. O comandante treme, mas bebe o copo inteiro num gole só.
QUARTEL - PÁTIO - EXT/DIA
Finalmente desaba o temporal e o palanque em peso bate em retirada. João Batista e demais caveiras entreolham-se pasmados pela a descida claudicante do Coronel Arthur do palanque amparado por Cabo Negão tentando manter o guarda-chuva com a ventania.
A chuva dissolve as perucas das amigas em debandada. Periquita adora a chuva. Fedelho e Pentelho chapinham nas poças.  Os caveiras continuam incólumes sob a borrasca.
Mulher de Branco abre a bolsinha, tira dois pés de galinha e os arremessa ao lado da espada do Bananal cravada ao lado de seus pés flutuantes.
TROVÃO ESTRONDOSO.  Cai um raio sobre Mulher de Branco, incendiando e volatilizando-a.
Cabo Negão embarca Coronel Arthur sacolejante de medo e ansiedade no Opala preto. As motocicletas roncam, a patrulha gorila liga a sirene, o portão do quartel abre-se automaticamente e o cortejo parte. O portão fecha.
O Esquadrão Caveira vai se evaporando no ar gradativamente à medida em que a chuva vai passando e o tempo volta a firmar.
QUARTEL - PÁTIO - EXT/DIA
Outro dia: o Esquadrão Caveira corre cantando ao redor do pátio liderados pelo Instrutor à frente.                                              
ESQUADRÃO CAVEIRA
Bate, espanca, quebra os ossos! Bate até morrer!
INSTRUTOR
E a cabeça?
ESQUADRÃO CAVEIRA
Arranca a cabeça e joga no mar!
INSTRUTOR
E quem faz isso?
ESQUADRÃO CAVEIRA
É o Esquadrão Caveira!
O portão do quartel abre-se e entra o Opala preto.  Cabo Negão desembarca o Coronel Arthur na frente do gabinete.
INSTRUTOR
Esquadrão: Sen-tido!
Coronel Arthur passa os caveiras em revista. De repente estaca e filma João Batista dos pés à cabeça. Sinaliza a Cabo Negão que segue ao seu lado anotando tudo num caderninho.
PRACINHA - EXT/DIA
De um minúsculo taxi fusquinha que chega na pracinha de Senador Camará, descem pela mesma porta:   
o CASAL CICRANO - CICRANA e SEU CICRANO, por volta dos 60 anos, negros, classe média baixa, mal vestidos.                                                   
o GARI, mulatão avantajado de 50 anos com uma NAMORADA garotinha menor de idade.                                                                                                                                        
o MENINO, 12 anos, negro, vestindo camisa da seleção bananeira puxando CACHORRO vira-latas pela coleira;                                          
as quatro Moças do Salão - LENI, LIA, LEILA e LUCI ,  todas na faixa entre 25 a 35 anos, desamassando-se escandalosas, provocantes e ostensivas;                                 
e mais três PAPAGAIOS cantantes em revoada. 
                      PAPAGAIOS
             Besta é tu, besta é tu/ Besta é tu, besta é tu
VIZINHOS na pracinha observam o movimento em frente à calçada dos Cicranos pelas janelas. 
Entre eles GORDA, masculina, branca e desleixada, 30 e poucos anos.                                                    
CASA DA GORDA - SALA - INT/DIA
O telefone toca, Gorda sai da janela e atende. 
GORDA
Alô. (...) Só um momentinho, eu vou chamar; peraí.
Chama da janela.
GORDA
Vizinha, Vizinha! Telefone!
PRACINHA - EXT/DIA
VIZINHA, magricela, pobre, insossa, 30 anos, atende ao chamado no portão de sua casa. Neste momento um automóvel estaciona em frente à aglomeração na calçada. A curiosidade de todos com o carro particular que chega não se esconde.
Três MOLEQUES DA RUA, por volta de 8 a 10 anos, desmazelados, descalços e atrevidos, surgem da pracinha circundando, farejando o carro, tocando. Intimidam o desembarque  
do CASAL FULANO - SR. FULANO e DONA FULANA, brancos, classe média alta, alinhados, 40 e poucos anos, sérios e circunspectos. Ficam constrangidos pela avaliação implacável dos demais na calçada e nas casas.
Vizinha e Gorda embasbacadas - uma na janela e outra no portão.
GORDA
Menina, olha isso!
VIZINHA
Caramba! Dessa vez a cachorra se deu bem, hein... Deve ter caído um peixão na tarrafa, né não?
GORDA
Já tava mermo chegando a hora dela dar outro baú.
VIZINHA
Ai, eu com aquela bundona e aquele peitão, ce ia ver só: ia tocar o maior rebu no soçaite!
GORDA
Ce tá achano que é só isso, minha filha? O mais importante é administrar o patrimônio! O resto é conversa fiada...
Chega um carrão mais chique ainda, grandão. Moleques da Rua, não se contém. Gritam excitados.
MOLEQUE 1
É os noivo!
Correm atrás até o carrão estacionar. Outro grito.
MOLEQUE 2
Os noivo chegaro!
Despeitadas, Gorda e Vizinha observam um MOTORISTA abrir a porta do carrão para desembarcar a noiva, DULCE - mulata de 40 e poucos anos, sestrosa-gostosa, apertada em vestido decotado vermelho, sorriso de dentes com buquê na mão,
e João Batista - o noivo.
MAIS ATRÁS
Gorda canta na janela.
GORDA
"Até que enfim, até que enfim"!
Vizinha entra no embalo.
VIZINHA
"Descolei um trouxa que gostou de mim"!
Cicrana se destaca injuriada da aglomeração em frente à sua casa.
CICRANA
Vai tomar banho, suas imunda!
Gorda ri debochada e se esconde ao lado da janela aberta. Vizinha dança e cantarola voltando do portão para casa.
VIZINHA
"Até que enfim, até que enfim..."
Cicrana caminha dedo em riste na direção da janela de Gorda e grita lá pra dentro.
CICRANA
Toma vergonha nessa cara suja ou eu vou chamar os gorila pra você!
João Batista avança intercedendo, acalmando.
JOÃO BATISTA
Deixa essa gente pra lá, minha sogra. Vem que tá na hora da Dulce jogar o buquê.
CASA DA GORDA - SALA - INT/DIA
Da janela Gorda observa as Moças do Salão separando-se da aglomeração na calçada. De costas, Dulce joga o buquê da noiva para o alto, as moças gritam pulando de braços ao alto, mas o buquê cai no jardim da casa de Vizinha.
PRACINHA - EXT/DIA
A porta da casa de Gorda abre-se estrepitosa, Gorda sai, invade a casa de Vizinha, pega o buquê e vai saindo.
Dulce estarrecida e Moças do Salão desconsoladas.                             
Vizinha surge na porta de casa.
VIZINHA
Pode ir largano isso aí, Gorda. Caiu nos meu domínio, é meu! Deixa essa porra aí e vai caíno fora da minha casa.
Gorda foge atracada com o buquê, mas Vizinha, mais ágil, alcança Gorda prestes a entrar em casa. Estapeiam-se. Gritos, palavrões. Menino e Cachorro circulam alvoroçados à volta da rixa. Gorda derruba Vizinha.
GORDA
Tás pensano que tu é páreo pra mim, mocreia?
O Casal Fulano recua aterrorizado de olhos pregados na cena. Moleques da Rua incentivam a escaramuça.
MOLEQUE 2
Isso mermo, mete a porrada!
MOLEQUE 1
Sou mais a Gorda.
MOLEQUE 3
Dou uma banana na Vizinha!
Vizinha rasga o penhoar de Gorda, deixando-a de sutiã e calçola enodoada à vista. Gorda perde o foco com a própria nudez quando Vizinha toma o buquê arranhando seu rosto. Estapeiam-se. Empolgados, mais e mais MORADORES vão assomando às janelas.                                                    
    Um ônibus para no ponto.
PASSAGEIRO
Mata ela, fanchona!
As contendoras se voltam contra o ônibus e passam a apedrejá-lo. Moleques da Rua aderem ao movimento e o ônibus arranca sob saraivada de pedras.
Dona Fulana se abriga apavorada nos braços de Sr Fulano. Cicrana tenta amenizar o climão.
CICRANA
Vamos logo entrar, gente, o cozido não pode esperar! Deixa essa gentalha pra lá, né Joãozinho?
JOÃO BATISTA
Isso aí, Cicrana. Vamos entrando, pessoal.
Vão entrando. OUVE-SE a sirene da patrulha gorila.
MOLEQUE 3
Sujô! Sujô!
Moleques da Rua desaparecem.
POLICIAL 40 anos branco, desembarca brandindo o cassetete na direção das contendoras. O ruído da ligação interrompida perpassa toda a ação.
POLICIAL
Já-já pra dentro da joaninha!
VIZINHA
Ela invadiu minha casa, seu gorila; foi ela!
MORADOR 1
É verdade, eu vi!
GORDA
Mintira, ela que me arranhou toda, olha só como eu tô!
MORADOR 2
Eu também vi. Foi o maior esculacho!
VIZINHA
Ela é subversiva, leva ela!
Menino e Cachorro apontam as cabeças na janela da casa dos Cicranos.
MENINO 
Subversiva! 
CACHORRO
Subversiva!
CORO DOS MORADORES NAS JANELAS
Subversiva! Subversiva!
Policial empurra Gorda para dentro da patrulhinha. Vizinha tenta escapar, mas tropeça e cai de cara no buquê. Policial a arrasta e empurra para o mesmo banco de Gorda na patrulha.
VIZINHA (V.O.)
Vai chegano pra lá, monte de bosta!
GORDA (V.O.)
Chega para lá você, escrota.
O buquê destroçado sobre fica abandonado na calçada. SIRENE da patrulha desaparece ao longe.
CASA DA GORDA - SALA - INT/DIA
Telefone fora do gancho em cima da mesa.
CASA DOS CICRANOS - QUINTAL - EXT/DIA
Bolo de noiva cafona sobre a mesa no quintal. Os convidados da recepção muito à vontade, improvisando sambinha no pé e bebendo todas.  Cicrana circula trôpega com copo de leite na mão. Luci e Leny servem quitutes e rebolados.                                  
Casal Fulano senta-se afastado, perto do Cachorro que Menino amarrou na árvore. O bicho late enlouquecido com o cheiro do cozido que vem da cozinha. Menino se aproxima.
DONA FULANA
Já estou vendo a hora que esse animal vai me dar um bote.  Tire ele daqui, menino!
MENINO
Fica tranquila aí, madame. O dogue é do bem.
SR. FULANO
Deixe o cachorro, criatura; que implicância!
Cachorro se põe de pé sobre as patas traseiras e expõe o pênis ereto para Dona Fulana que persigna-se. Chega Luci com bandeja de salgadinhos.
LUCI
E aí, estão se divertindo? Vamos comer um salgadinho...
DONA FULANA
Não vou tocar em-na-da. Não quero nem ver o tal do...
Cicrana chega claudicante no ato equilibrando o copo de leite e emenda.
CICRANA
...o cozido já tá pronto, meus amores. Faço qüestã de escutar a opinião da s-senhora. Aposto que vocês vão a-do-rar.
Chama atenção da Moças do Salão.
CICRANA
Gente, gente! Bota uma cervejinha nos trinques pro pessoal aqui!
SR. FULANO
Aqui ninguém bebe, mas acho que
vou experimentar um salgadinho só pra não dizer que não falei de flores.
DONA FULANA
Francamente...
Seu Cicrano chega já visivelmente bêbado.
SEU CICRANO
Cestão b-bem aí?
Também chama a atenção das Moças do Salão.
SEU CICRANO
Não pode faltar nada aqui, ó! Cestão o-ovino bem?
Chega João Batista com cervejas. Todos se animam.
SR. FULANO
Meu filho! Estou gostando de ver como você está alinhado! Pena que aqui ninguém bebe nem fuma...
JOÃO BATISTA
...mas como hoje é dia do meu casamento vamos abrir uma exceçãozinha, né, mãe?
DONA FULANA
Eu, só de sentir o cheiro dessa coisa, parece que eu vou desmaiar.
SR FULANO
Come um salgadinho, tá uma delícia.
DONA FULANA
Até tu, Fulano? Por Deus Nosso Senhor!
O samba breca com a aparição de Dulce na porta da cozinha. João Batista vai recebê-la com um super beijo. APLAUSOS. Voltam o samba, a cerveja e a animação.
MAIS À FRENTE
Alvoroçadas à volta de Dulce, Moças do Salão comemoram o casamento. Leny admira o vestido da noiva.
LENY
O vestido que Joel vai me dar de casamento, botar esse teu aí no chinelo, ce vai ver só.
Risadas. Luci puxa Lia para o lado.
LUCI
Vai ficar na saudade, coitada. Se soubesse o que esse pilantra anda aprontando...
LIA
Quer um conselho de amiga? Deixa essa história com a Leny pra lá; melhor a gente ficar fora disso.
Voltam à rodinha.
DULCE
Amo vocês, minhas irmãzinhas! Sem vocês esse cozido não saía.
Risadas.
LENY
Já compraram a passagem?
DULCE
Claro, minha filha. Acha que eu durmo no ponto?
LUCI
Agora só falta aprontar a mala do noivo...
Risadas.
DULCE
... e a farda de sargento também, meu amór: A promoção no quartel sai por esses dias. Nossa lua de mel vai ter que ser rapidinha...
LENY
Não demora muito a senhora vai ficar buchuda.
DULCE
Deus queira, Leny. Vai ser uma gravidez de alto risco, mas é o único jeito de Dona Fulana parar de me encher o saco com essa história de neto. É neto pra cá, é neto pra lá, toda hora, um saco. Mas se Deus quiser vai dar tudo certo.
João Batista chega escondido por trás e assusta Dulce. Gritinhos. Beijo do casal, aplausos das Moças do Salão.
SEU CICRANO (V.O.)
O cozidooo! Olha o cozido aí, genteee.
Sob aclamação chega o panelão mas não cabe na mesa sem que João Batista e Menino levem o bolo para mesa dos pais. Dona Fulana aproveita para jogar a bandeja de quitutes para Cachorro que, agradecido, exibe o pênis pra ela. Dona Fulana quase dá um troço.
SR. FULANO
Hmmmmm... Estou sentindo o cheirinho daqui.
DONA FULANA
Enlouqueceu? Faça-me o favor de não aparecer com nada de cozido aqui na minha frente!
JOÃO BATISTA
Mas mamãe...
Dulce salva João Batista puxando-o dali.
QUINTAL - ATRÁS DA MOITA - EXT/DIA
Leva-o para trás da moita, tira a calcinha e joga no chão.
DULCE
Toma meu presente de casamento.
Dá-lhe uma sonora bofetada na cara. João Batista retruca igualmente. Sorriem apaixonados, abraçam-se.
JOÃO BATISTA
O resto você vai ver lá em Petrópolis.
DULCE
Já está com a mala pronta, mozinho?
JOÃO BATISTA
Me aguarde.
CASA DOS CICRANOS - QUINTAL - EXT/DIA
Resíduos do cozido se espalham pelo quintal. Bebuns dançam a esmo indiferentes à melodia do radinho de plástico. Impaciente, Cachorro se solta da coleira e avança em baixo da saia de Dona Fulana, que desmaia sobre o marido. Alguém grita.
ALGUÉM (V.O.)
A valsa! Cadê a valsa!
Casais valsam. Sr. Fulano roda desorientado com Dona Fulana desmaiada nos braços em meio aos valsantes. Acontecem alguns acidentes. João Batista quer abandonar noiva no salão pra socorrer a mãe, mas ela o puxa de volta num beijo escandaloso.  No meio da confusão, Gari dá uma ideia.
GARI
Dá-lhe uma boa talagada de cana que
num instante essa madame vai ficar esperta.
A valsa para. Entornam uma garrafa de cachaça por um funil goela baixo de Dona Fulana. Ela engasga, tosse, estremece, apruma, sacode a poeira e abana-se. Todos atônitos.
DONA FULANA
Porra, que calor do caralho! Cestão olhando o que? Eu, hein, nunca me viram? Que gente é essa? E a merda da valsa, cadê a valsa, porra?
SR. FULANO
Fulana, que horror! Que bicho que te mordeu, mulher?
DONA FULANA
Aquele cão.
Aponta o pênis de Cachorro. Todos aplaudem. Cicrana afinal pousa o copo de leite, tira Dona Fulana para dançar e rodam às mil maravilhas.
ATRÁS DA MOITA
Cachorro mastiga a calcinha de Dulce caída no chão.
FRENTE DE DELEGACIA - EXT/DIA
Patrulha gorila desova Gorda e Vizinha. POLICIAL leva as duas para dentro.
DELEGACIA - RECEPÇÃO - INT/DIA
Policial empurra as duas num banco na recepção.
GORDA
Vai chegano pra lá que eu acabo de quebrar essa lata véia.
VIZINHA
Lata véia é a tua, sua filha da puta!
Engalfinham-se. Policial e baixa-lhes o cacete, silenciando-as. Choros e resmungos. Policial vai para o interior da delegacia. TIQUE-TAQUES ecoam de um relógio sem ponteiros pendurado na parede. Ao lado está pregado um cartaz de caça a terroristas encabeçado por foto de Joel. RUÍDOS de datilografia. Policial volta.
POLICIAL
Vamos entrando, anda!
DELEGACIA - SALA DO DELEGADO - INT/DIA
DELEGADO FLORES, 45 anos, terno amarfanhado, encardido, aspecto sórdido, tem uma mancha escura em grande parte do rosto.
Lê o boletim de ocorrência sentado atrás da escrivaninha. Policial empurra Gorda e Vizinha porta adentro. ESCRIVÃO ao lado, óculos fundo de garrafa, barba por fazer, 40 anos e dedos amarelados, fuma observando.
DELEGADO FLORES
Hmmmmmm, vamos ver qualé o menu de hoje: Roubo e agressão numa caixa d'água só? Excelente! Hoje minha barriga vai sair da miséria.
VIZINHA
Ela invadiu minha casa pra robá o boquete da noiva que caiu lá dentro, dotô!
GORDA
Mintira, tudo mintira! Ela tá quereno me sacanear! Morre de inveja de mim, essa filha da puta!
DELEGADO FLORES
Cala a boca! Aqui só fala na hora que eu mandar e o que eu quiser ouvir! Deu pra entender?
POLICIAL
Tem aquele outro assunto também, doutor.
DELEGADO FLORES
Ah, é! Que papo é esse de subversiva, hein? Anda, desembucha! Agora sou eu que estou mandando falar.
As duas levantam ao mesmo tempo. Escrivão de olhos esbugalhados na cena.
DELEGADO FLORES
Fala primeiro a senhora.
Gorda exibe ferimentos da escaramuça.
GORDA
Olha o que ela fez comigo no meio da rua, dotô!
VIZINHA
Eu é o caralho! Foi ela merma que se arranhô pra se fazê de vítima pras otoridade.
DELEGADO FLORES
Caguei pra isso! Se tivessem se matado uma à outra, essa hora eu já estava em casa tomando cerveja. Só não foram diretas pra jaula por conta dessa história de subversiva. Trata de explicar essa porra bem detalhadinha.
PETRÓPOLIS - RUAS - EXT/DIA
Em lua de mel Dulce e João Batista passeiam de charrete pelos pontos turísticos da cidade de Petrópolis. Apeiam em frente ao Museu Imperial.
MUSEU IMPERIAL - INT/DIA
Dulce e João Batista observam pintura retratando retrato Dom Pedro I.
DULCE
Olha, João, igualzinho você no dia em que te conheci. Quando vi aquela farda cismei com aquilo! Pensei: É com esse que eu vou!
SALÃO - INT/NOITE
Moças do Salão aguardam clientes manicurando-se, penteando, etc. Leila dança sozinha na pista. João Batista entra fardado esgueirando-se timidamente pelos cantos. Toma coragem e encosta no balcão.
JOÃO BATISTA
Uma cuba libre.
Enquanto é servido por SALOMÃO, brutamontes negro retinto de 40 e poucos anos, Luci, Leny, Leila e Lia se aproximam.
LEILA
Uau! Que novidade é esta?
Luci toma sua frente.
LUCI
De onde saiu esta preciosidade, da FEBEM?
LIA
Não, colega. Este uniforme é do colégio gorila, acertei?
João Batista constrangido treme com a cuba libre na mão.
LENY
Relaxa, bofinho. Aqui é o único lugar do mundo que a vergonha tirou férias vitalícias.
LIA
Ai, que graça! Já faz tempo que um petiscozinho assim não caia na minha rede...
LENY
Já escolheu sua candidata? Qual é o seu partido? Vai votar em quem?
JOÃO BATISTA
Acabei de chegar...
Afasta-se com a bebida na mão. Leila o alcança.
LEILA
Por acaso não somos boas o suficiente para satisfazer vossa excelência?
JOÃO BATISTA
É a primeira vez que eu venho num lugar assim.
LEILA
Ah, tá; conta outra.
Leila estala o dedo no ar e Salomão insere uma ficha na máquina. Arrasta João Batista tropeçando para o centro da pista e faz um striptease completo à sua volta. Ao fim, Salomão bate o gongo e Leila desaparece recolhendo a roupa. João Batista pega a calcinha esquecida no chão e cheira.                                                                  As luzes diminuem, canhão ilumina Dulce toda produzida surgindo dos fundos. A calcinha cai no chão, João Batista boquiaberto. Dulce canta.
DULCE
"Quiero que vivas solo para mi / Y que tu vayas por donde yo voy / Para que mi alma sea no más de ti / Bezame con frenezi"...
LENY
Fodeu! O garoto já era.
DELEGACIA - SALA DO DELEGADO - INT/DIA
Gorda e Vizinha vexadas na frente do delegado.
VIZINHA
O povo tá falano que ela é cumunista.
GORDA
Num entra na dela não, dotô! É tudo futrica dessa besta quadrada.
A um sinal do Delegado, Policial dá um tapa na cara de Gorda. Vizinha se desmancha de rir, deliciando-se. Delegado aponta para ela. Escrivão em atividade na datilografia.
DELEGADO FLORES
Vai, desembucha.
VIZINHA
É um monte de gente que entra e sai na casa dela, dotô. Às vez nem sai - desaparece lá dentro mermo. O povo repara, né?
DELEGADO FLORES
Que gente é essa, dona... Como é mesmo seu nome?
GORDA
Claire; Claire Montenegro.
DELEGADO FLORES
A madame é francesa? Que chiquê!
GORDA
Não senhor, sou suburbana mermo; francesa são minhas amiga.
VIZINHA
Num tô falano? É fanchona, dotô!
Gorda agarra pescoço de Vizinha, derrubam objetos, espalham papéis. Policial e Escrivão separam a briga. Delegado Flores se adianta e dá dois tapas na cara de cada uma. Sentam-se. Vizinha choraminga.
DELEGADO FLORES
Se precisar eu cubro vocês de porrada até matar, suas muquiranas! Aqui não tem raivinha, nervosinho  não. Comigo vocês vão acabar se fodendo. Falaí.
GORDA
São minhas amiga, dotô. A gente costuma se reunir prum feijão no quintal, uns birinaite.
DELEGADO FLORES
Só tem sapatão?
GORDA
Não dotô, minhas amiga tem de tudo. O senhor entende, né? Tem a Rainha dos Raio...
DELEGADO FLORES
Esse nome não me é estranho...
ESCRIVÃO
Anda esquecido mesmo, hein, chefia. É aquele viado que tá na carceragem.
DELEGADO FLORES
Ah, isso mesmo, a bicha maluca! Não sabia que comunista era desse jeito não. Essa gente costuma ser muito careta. A moral da esquerda é a mesma da igreja católica.
GORDA
O que? Guilherme está aqui? O que aconteceu com ele? Deixa eu vê ele, dotô. Pelo amor de Deus!
VIZINHA
Num falei? É tudo cumunista.
Delegado Flores dá outro tapa na cara da Vizinha.
DELEGADO FLORES
Aqui vocês são o que eu qui-ser, e a senhora só desce do poleiro quando eu man-dar. Chama São Pedro!
Escrivão disca um ramal.
ESCRIVÃO
O doutor está chamando. Tem encomenda.
VIZINHA
Tem que avisar papai...
GORDA
É melhor mermo todo mundo saber onde cê veio parar, escrota. Liga lá para casa que se tiver alguém, dão o recado: 38-72-94.
Policial sai com as detentas. Entra a carcereira SÃO PEDRO, gorda, mal ajustada em farda policial, faixa dos 40 anos, cassetete e molho de chaves pendurados na cintura.
SÃO PEDRO
Chamô, dotô?
DELEGADO FLORES
Bota a Gorda nas políticas e manda a cachorrinha se ligar nela. A outra você dá o seu jeito.
SÃO PEDRO
Tô ligada. Pode ficar tranquilo, dotô.
São Pedro sai. Delegado disca o número.
DELEGADO FLORES
Tem alguma coisa aí que não está me cheirando bem.
CASA DA GORDA - SALA - INT/DIA
Telefone fora do gancho emite sinal de ocupado. Pela janela aberta vê-se a chegada do Gorilão. Desembarcam Delegado Flores, o Policial e o Escrivão. Vê-se imagens trêmulas de curiosos reunindo-se na frente da casa através da janela aberta. OUVE-SE passos se aproximando, porta arrombada, móveis arrastados, vidros quebrados e panelas jogadas ao chão. O som intermitente do telefone fora do gancho assume o primeiro plano.
DELEGADO FLORES (V.O.)
Pente fino no quintal!
ESCRIVÃO (V.O.)
Não tem nada no quarto nem na cozinha.
POLICIAL (V.O.)
Delegado! Delegado! Olha aqui, enterrado lá fora.
A mão do Delegado Flores afasta o telefone. Em seu lugar é depositado um grande embrulho sujo de terra. Limpam-no mal e porcamente e desfeitas algumas camadas de jornal revela-se grande quantidade de maconha.
DELEGADO FLORES (V.O.)
Aahhh, então é isso...
A casa está toda empastelada, uma televisão a um canto. Policial aponta.
POLICIAL
Dotô, posso dar um ganho naquela televisão?
DELEGADO FLORES
Que televisão, tá maluco? Não estou vendo televisão nenhuma aqui. E você nem falou nada comigo.
POLICIAL
E eu nem vim nessa patrulha!
O embrulho é removido e a mão do Delegado Flores coloca o telefone no gancho. RUÍDOS de passos se afastando. A janela da Gorda emoldura a saída dos invasores e a aglomeração de curiosos assistindo busca e apreensão. Delegado sai carregando o pacotão e os dois outros a televisão. Tudo é prontamente depositado na caçamba do gorilão.
PRACINHA - EXT/DIA
Policial isola a fachada da casa da Gorda com fita. Delegado Flores se dirige à plateia.
DELEGADO FLORES
A partir de agora esta propriedade está la-cra-da. Fica expressamente proibida a entrada de quem quer que seja sem ordem judicial!
Vizinhança bestificada. O gorilão parte. Imediatamente todos se precipitam na direção da casa de Gorda.
CASA DA GORDA - SALA - INT/DIA
Espalhada pela sala totalmente revirada, vizinhança permanece chocada durante alguns segundos. De repente avançam todos sobre o que conseguem pilhar.
PRACINHA - EXT/DIA
Saem com móveis e objetos pela porta e pela janela da casa de Gorda. Um sofá também é evacuado ao lado, da casa de Vizinha, cujo pai - 85 anos, apoiado em muletas - desespera-se porta afora.
PAI DE VIZINHA
Socorro, gorilas! Socorro!
SALÃO - QUARTO DOS FUNDOS - INT/NOITE
João Batista está sentado na cama. Dulce fecha a porta e abaixa-se para desamarrar os coturnos do soldado. Descalça-os, explora suas pernas, desabotoa a braguilha, mas João Batista permanece fora do ar.
DULCE
Que foi? Tá com vergonha, soldado? Fala! Cospe o que tá entalado nesse gogó.
João Batista chora quieto. Dulce se aproxima lentamente de seu rosto, lambe a lágrima, afasta-se, tira o vestido e pega um chicote.
DULCE
Fica em pé aí em cima! Vai tirando essa farda. Pelado agora! Pelado!
Nu, João Batista cobre o sexo. Dulce estala o chicote.
DULCE
Agora fala.
João Batista gagueja.
DULCE
Bota pra fora, porra!
JOÃO BATISTA
É que eu...
Pausa. Dulce digere a situação por alguns segundos e explode em gargalhada passeando pra lá e pra cá ao lado da cama.
DULCE
Até que você se esconde direitinho, principalmente em baixo dessa farda ridícula.
JOÃO BATISTA
Sou virgem.
DULCE
Hahahahaha! Num quartel cheio de garotão, tudo de pica grande e você não tá nem aí? Eu, hein, pra cima de moi, queridinha, só confecções! Mas tem uma coisa que eu ainda não entendi.
JOÃO BATISTA
Como assim?
DULCE
O que você veio fazer aqui.
João Batista cora e fica completamente constrangido.
DULCE
Hein? Desembucha!
JOÃO BATISTA
E-estou procurando uma coisa muito difícil.
DULCE
Qual é o problema? Correr atrás do que se quer é sempre bom. Pois continue assim, jovem. Eu, de minha autoria, atualmente estou esperando o milagre econômico chegar lá em casa. Tá bom pra você?
Outra lágrima, outra lambida de Dulce, quase um chupão.
JOÃO BATISTA
Preciso de socorro.
Dulce derruba Joãozinho na cama e cai afetuosa ao seu lado.
DULCE
Mas será o Benedito? Não tem outra pessoa nessa vida pra você procurar, um amigo? O que os seus pais acham disso?
CASA DOS FULANOS - SALA - INT/NOITE
Família jantando.
SR. FULANO
Agradecemos a Deus pelo alimento. Que o Senhor abençoe e proteja nosso filho no quartel e ilumine sua carreira hoje e para todo sempre, amém.
Dona Fulana serve um baita naco de carne assada com farofa no prato de João Batista.
DONA FULANA
Louvado seja! Nosso filho só nos dá alegria. Precisa se alimentar muito bem para continuar assim, Joãozinho.
Riem.
JOÃO BATISTA
Minha felicidade é ver vocês contentes.
SR. FULANO
Trata de comer. Dar dura em terrorista no centro da cidade exige muito combustível! A responsabilidade aumentou, a barra está ficando cada vez mais pesada. Te cuida!
DONA FULANA
Procura ficar dentro do quartel, meu filho, não te mete em confusão.
SR. FULANO
Com 22 anos já está mais do que na hora de você ir na igreja procurar uma moça decente pra casar. Na sua idade eu já era noivo.
DONA FULANA
Joãozinho, não vejo a hora de ganhar um neto.
João Batista engasga, tosse, e Sr. Fulano dá um tapa em suas costas. João Batista cospe um naco inteiro de carne assada.
SALÃO - QUARTO DOS FUNDOS - INT/NOITE
Dulce e João Batista na cama. Vulto de Dona Fulana sai de baixo da cama. Sua voz ondula dissonante.
VOZ
Um neto... Um neto... Um neto...
O vulto desaparece transpassando a porta. João Batista atordoado.  
JOÃO BATISTA
Dia e noite isso na minha cabeça! Não tenho mais sossego, estou quase enlouquecendo.
DULCE
E você goza como? (...) Ou não goza? (...)Toca punheta? Dá o cu? Fode alguém?
João não treme na base. Dulce estala o chicote.
DULCE
Te fiz uma pergunta, porra!
João Batista enrubesce. Chora baixinho indicando a porta.
JOÃO BATISTA
O-o-o-o-o... Joel!
DULCE
Joel, que Joel?
Dulce desconfia. Pausa.
DULCE
O Joeeel?
JOÃO BATISTA
Ele. Leny nem desconfia. A situação não tá fácil.
DULCE
Caralho, esse angu tem grandes chances de ficar bem encaroçado! Mas então você não é propriamente virgem...
JOÃO BATISTA
Sou sim.
DULCE
Como assim? Lá e cá?
JOÃO BATISTA
É.
Dulce olha para a câmera.
DULCE
Será que eu entendi?
João quer vestir a farda, mas Dulce chicoteia impedindo.
DULCE
E por que você pensa que eu vou te ajudar nisso?
João Batista tira um enorme consolo preto do bolso da farda.
JOÃO BATISTA
Joel vive jogando na minha cara que sexo anal é decadência burguesa. Não quero desperdiçar minha mocidade...
Aponta o consolo para Dulce. Ela recua.
DULCE
Eu?
JOÃO BATISTA
A senhora. Por favor, faz essa boa ação.
DULCE
Escute aqui, maricona: a Senhora está no céu, tá? Eu sou é puta mesmo, o que não me impede de ter meus princípios.
JOÃO BATISTA
E qual é o princípio que impede a putona de me fazer esse favor?
Dulce reflete, embatucada de olhos fixos no consolo. João Batista impaciente bate nervosamente o pezinho.
DULCE
Pensando bem, nenhum. Mas vou ganhar o que com isso?
JOÃO BATISTA
Posso resolver seu problema também.
DULCE
Meu filho, não tenho nenhum problema. Puta é um trampo como qualquer outro. Minha vida é um livro arreganhado, todo mundo sabe.
JOÃO BATISTA
Eu sei qual é o sonho de toda puta.
DULCE
Não venha pra cá achando que vai me dar a volta que eu te cubro de porrada!
JOÃO BATISTA
Preciso me casar.
Dulce empalidece, desarma, tenta se vestir, mas desiste quando João Batista apresenta uma caixinha com par de alianças. Da caixinha soam cantantes as vozes do casal Fulano.
VOZ DE SR. FULANO
"Na sua idade eu já era noivo"!
VOZ DE DONA FULANA
"Um neto! Um neto"!
JOÃO BATISTA
Essa porra me martelando na cabeça! Não aguento mais essa pressão todo dia, todo dia!
João Batista coloca aliança no dedo de Dulce.
JOÃO BATISTA (V.O.)
Minha promoção pra sargento vai sair por esses dias.
Dulce acaricia ternamente os cabelos de João Batista.
DULCE
Meu sargento...
De repente João Batista dá um salto acrobático e aterriza de quatro sobre a cama.
JOÃO BATISTA
Vamos logo com isso!
Dulce se empolga, pega consolo e sobe na cama. Close de João Batista.
JOÃO BATISTA
Aaaaaahhhhhhh!
PETRÓPOLIS - FRENTE DA CASA DA MORTE - EXT/DIA
Um cavalo atrelado à charrete que conduz João Batista e Dulce em lua de mel empaca em frente à Casa da Morte. COCHEIRO, velho de barbas brancas, conversa com o animal.
COCHEIRO
Porra! Já te falei um monte de vez que é proibido parar aqui. Vamo, vambora!
Cavalo magro e mal tratado não arreda. Espanta moscas com a cauda. Cocheiro açoita e o cavalo resfolega. O casal se impacienta em cima da charrete.
JOÃO BATISTA
O que foi? Empacou?
COCHEIRO
Toda vez que passo aqui é a mesma ladainha. Estou para entender.
JOÃO BATISTA
Pode ter entrado pedrinha no casco dele. Já aconteceu isso lá na cavalaria.
COCHEIRO
O senhor pode até ser militar, mas de cavalo, me desculpe, o senhor não entende nada. As besta quando empaca fica pior do que gente.
Eis que surgem o opala preto seguido pelo gorilão e uma ambulância buzinando atrás da charrete.
COCHEIRO
Só me faltava essa.
Açoita mais uma vez. O cavalo empina, relincha, mas não anda. Os carros continuam buzinando.
OPALA PRETO - INT/DIA
João Batista chega na janela do motorista do opala, Cabo Negão.
JOÃO BATISTA
Desculpem só um momento, por favor; já vamos sair. Aconteceu um problema com o animal. É rápido.
Assusta-se com a estatura de Cabo Negão saindo tempestivamente do opala preto. Passa arrogante por João Batista e toma ostensivo o chicote do Cocheiro. Castiga o cavalo que não para de relinchar e empinar. Dulce se desespera e desce da charrete.                                         
De repente a Mulher de Branco se materializa em frente ao animal. Tira dois pés de galinha da bolsinha e atira-os no chão. Cavalo transpassa Mulher de Branco fugindo em disparada com a charrete vazia. Mulher de Branco evapora-se.
O opala preto e o gorilão entram na Casa da Morte. A ambulância estaciona em frente, na calçada. Cabo Negão abre porta do opala para o desembarque de Coronel Arthur e Policial para o do Delegado Flores no gorilão.                         Paramédico puxa uma cama ortopédica da ambulância com Freira atada a vários aparelhos em cima.
DULCE
Covarde!
JOÃO BATISTA
Canalha!
COCHEIRO
Filho da puta!
O séquito entra na casa. Em janela superior, Mulher de Branco sorri enigmaticamente apreciando a paisagem.
QUARTEL - GABINETE DO CORONEL - INT/DIA
Coronel Arthur filma João Batista dos pés à cabeça.
JOÃO BATISTA
Sargento João Batista às suas ordens. Seja bem-vindo, coronel.
Suor escorre do quepe e atravessa a face de João Batista. Pausado, Coronel encara o sargento friamente.
CORONEL ARTHUR
Agora vejam como são as coisas... Se não me falha a memória o senhor é um dos autores daquela cena de baixaria constrangedora em Petrópolis na semana passada.
Cabo Negão se adianta.
CABO NEGÃO
É ele mesmo.
JOÃO BATISTA
Peço desculpas, coronel. Estava licenciado do meu casamento e no calor dos acontecimentos...
Coronel Arthur passeia em volta de João Batista.
CORONEL ARTHUR
A consciência da ordem em primeiro lugar! Neste gabinete não se admitem faltas! Não se combate o comunismo com indisciplina!
JOÃO BATISTA
Peço desculpas, coronel. Posso afirmar que doravante vossa excelência não terá nada do que reclamar da minha conduta.
Cabo Negão percorre o gabinete, passa dedo em uma prateleira e o exibe empoeirado. Coronel Arthur roda à volta do sargento.
CORONEL ARTHUR
Boa conduta é só uma parte do Bananal Grande! A casa precisa estar limpa para funcionar perfeitamente. Está me entendendo? Quero este gabinete im-pe-cá-vel hoje ainda, antes do final do expediente. Fui claro?
Cabo Negão abre a porta do gabinete, Coronel Arthur dá meia volta e sai com ele. João Batista disca um ramal no telefone.
JOÃO BATISTA
Serviços gerais?
PÁTIO DO QUARTEL - EXT/DIA
Coronel Arthur e Cabo Negão se aproximam do portão ao fundo do pátio.
CABO NEGÃO
Melhor o senhor não entrar aí agora não, coronel.
CORONEL ARTHUR
Qual é o problema?
CABO NEGÃO
Tão fazendo faxina.
OUVE-SE gritos lancinantes vindos das trevas do portão.
CORONEL ARTHUR
Tem visita?
CABO NEGÃO
O deputado e o filho da madame.
QUARTEL - CORREDOR DO PORTÃO DOS FUNDOS - INT/DIA
Coronel Arthur e Cabo Negão avançam por corredor de celas vazias. Uma delas abriga FILHO DE MADAME, 27 anos, branco, louro, todo contundido, várias esquimoses.
FILHO DA MADAME
Me tira daqui! Me tira daqui! Eu não sei de nada!
Continuam caminhando até a porta da última cela. Os gritos se avolumam a cada passo.
QUARTEL - CELA NO FINAL DO CORREDOR - INT/DIA
Da porta assistem TORTURADOR 40 anos, branco, sinistro, em mangas de camisa baixando cacete em DEPUTADO - senhor branco mais para gordo, sem camisa e pendurado no pau de arara.
TORTURADOR
Tás pensando que isso aqui é a cama dos deputado? Os comunista que te botaro lá dentro não pia nada aqui não!
Baixa-lhe nova cacetada. Jorro copioso de sangue brota de sua cabeça. A um gesto de Coronel Arthur, Cabo Negão invade a cela, empurra Torturador e desamarra Deputado.   Coronel Arthur se aproxima do pau de arara. Toca na jugular de Deputado.
CORONEL ARTHUR
Chama o Cadelão. De pressa!
TORTURADOR
Coronel, o senhor vai me desculpar, por favor, aconteceu esse acidente.
CORONEL ARTHUR
Vocês não aprenderam nada! Sabe quanto custa um gringo pra ensinar vocês aos cofres da nação? E no final das contas, para que?
Aponta o cadáver.
CORONEL ARTHUR (CONT.)
Bando de incompetentes! Quem vai arcar com esse prejuízo?
TORTURADOR
Coronel,posso explicar...
CORONEL ARTHUR
Explicar porra nenhuma! Quero saber em que esse presunto vai se transformar. Tem ideia do que significa isso?
Silêncio e de repente gritos vindos do corredor.
FILHO DA MADAME (V.O.)
Assassinos! Mataram o deputado!
Assassinos!
Sangue jorra aos borbotões da cabeça de Deputado, escorre pelo chão e chega aos coturnos de Coronel Arthur que dá um pulinho para trás.
CORONEL ARTHUR
Embrulha pra presente e manda
internar no Jardim Zoológico.
CABO NEGÃO
Já faz tempo que lá não tem mais vaga, excelência.
CORONEL ARTHUR
Não quero saber detalhes, quero a encomenda despachada. Vocês são pagos para que?
CABO NEGÃO
Resolver o pepino e ficar de boca
calada. Mas o outro pode dar com a língua nos dentes...
CORONEL ARTHUR
Esse manda passar a lixa no aeroporto.
Dá meia volta e sai. Cabo Negão segue atrás anotando no caderninho.
FIM DO PRIMEIRO CAPÍTULO

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